COLHENDO BONS FRUTOS
A semente jogada ao solo precisa de nutrientes para dar frutos. Assim é com as pessoas: é preciso plantar ideias e cultivar o hábito de alimentá-las para fazer uma boa colheita. Foi assim com Sônia. Desde cedo, queria fazer serviço social, mas por pressão da mãe, foi parar na área da comunicação. Contudo, o sentimento de servir ao próximo nunca a abandonou. Dedicou parte de seu tempo a serviços voluntários, alimentando assim seu primeiro desejo.
Em 2001, em companhia dos filhos, abriu uma livraria-café. Era em meio a livros que se sentia feliz. Na época conheceu o seu Noé, que desejava criar uma biblioteca comunitária na Associação dos Moradores do Bairro Carlos Wilkens, espaço onde era o presidente e que havia sido cedido pela prefeitura para ser usado em prol da comunidade. Foi com um acervo de obras doadas por Sônia e outros apoiadores que ele realizou tal projeto. Infelizmente, a biblioteca teve vida curta e suas portas foram fechadas. Cada vez que passava na frente do local, Sônia sentia pena.
Foi numa manhã de brisa fresca, no ano de 2012, que o cosmo deu um pequeno empurrão. Cristiane, uma jovem estudante de pedagogia, saiu de casa com o coração acalorado, pois tinha recebido um comunicado urgente. A saída de campo da Faculdade Cesuca seria ali mesmo, no município de Cachoeirinha, numa associação de moradores próxima a vilas carentes: uma ótima oportunidade para excelentes projetos. E lá foi ela, junto com seus colegas de curso. Levaram alimentos, pois crianças participariam. O sonho ideal para uma jovem que queria construir seus alicerces nas bases da educação.
A associação era a mesma de que seu Noé participava. Apesar de pouco abrir aquele espaço, lá estava ele, a postos para recebê-los. Enquanto ele falava sobre a praça, mostrando o pátio amplo mas pouco cuidado, alguns alunos se escoravam nos grandes troncos de cedros e angicos vermelhos, árvores que até hoje se enraízam naquele lugar e servem de palco para os passarinhos orquestrarem delicadas sinfonias. Pelas grades da cerca de ferro, a vizinhança ao redor espiava curiosa e palpiteira.
Quando seu Noé abriu a porta da meia-água de alvenaria, mais ao fundo do pátio, eles viram um acervo obscurecido pelo pó, pela umidade e consumido pelas traças. Eram livros e mais livros. Ali estava a biblioteca: um tesouro abandonado. Uma cena triste para os estudantes que almejavam seguir o rumo da docência, um choque de realidade. Os livros mereciam tratamento especial.
Seu Noé narrava que os moradores usavam o local para descartar entulho. O espaço também era alvo de traficantes, visitado com frequência por adolescentes, que por conta de seus anseios, problemas familiares e insatisfação com o sistema, iam ali fazer suas tortuosas revoluções, do qual usavam drogas e depredavam o local. Em silêncio, os alunos escutavam. Uma dor anunciava que aquilo não era certo e, enquanto a voz do homem entrava nos ouvidos e na alma dos estudantes, certo mistério de promessa se desenhava no ar.
Os dias passaram. Cristiane, como boa estudante, já pensava nos projetos que poderiam realizar ali. No finalzinho daquele ano, seu Noé, pressentindo os sentimentos da moça, lhe apresentou a Sônia. Uma luz se fez, e numa perfeita sintonia, quase que na mesma hora, as duas tiveram o ímpeto de levantar aquele espaço, em especial a biblioteca. E naquele momento a semente ganhou adubo. Outras almas boas se juntaram a elas, arregaçaram as mangas e com entusiasmo, abriram as portas e as janelas da biblioteca. Debulharam prateleiras e espanaram o pó, as traças, o vazio e o silêncio. Conseguiram salvar algumas jóias, porém muitos livros se perderam.
O entusiasmo do projeto atraiu mais pessoas e, no calor do verão, colocaram a mesa para fora da sala, enchiam-na de livros e, sentadas em volta, sete mulheres trabalhavam encantadas. Enquanto selecionavam e classificavam as preciosidades, elas tagarelavam sobre as coisas da vida, riam, conversavam e, sobretudo, sonhavam em melhorar a vida nas comunidades. Ofereceriam cultura, esporte e lazer. Fariam dali um lugar de sonhos, onde, através dos livros, conquistariam os moradores, incentivariam à leitura e mostrariam um mundo em potencial.
Com a ajuda de amigos, conseguiram inaugurar a biblioteca em 16 de março de 2013. Era muita alegria, mas nem tudo foram flores. Em novembro, Sônia se ausentou por 17 dias para se dedicar à Feira do Livro de Porto Alegre. Quando voltou, avistou à frente da Biblioteca, na calçada da Associação, muito lixo jogado pela vizinhança. Uma dor na alma dizia para ela desistir. Porém, nesse momento, Cristiane chegou tão motivada e feliz, que nem deu tempo de Sônia se lastimar. A estudante contava, entusiasmada, que fizera seu estágio ali, naquele ambiente que ajudou a reerguer. A alegria era tanta que a esperança de Sônia renasceu.
Em outubro de 2014, Sônia ganhou um prêmio com o projeto Quitanda da Leitura e investiu recursos no acervo da Biblioteca, que foi batizada como Ponto de Leitura Sol e Lua. Naquele mesmo ano, seu Noé renunciou à presidência da Associação e foi substituído por dona Maria, que passou a trabalhar junto com a equipe do Ponto de Leitura pelas melhorias na praça.
Com o tempo, os vizinhos perceberam que ali não era lugar de descartar lixo, mas um ambiente onde podiam levar seus filhos, um espaço seguro. E quando o Ponto de Leitura passou a disponibilizar Wi-fi para os frequentadores da praça, todos passaram a zelar ainda mais pelo local. Hoje, a biblioteca tem novo nome e endereço, e faz parte da rede de bibliotecas comunitárias. E para completar a boa safra, no dia 13 de junho de 2020, ela passou a ter como mantenedora o Instituto Cultural e Social Ágora. Cristiane e as outras meninas foram cultivar ideias em outros lugares, e Sônia continua firme no comando da, agora Biblioteca Comunitária Sol e Lua, realizando aquilo que sempre sonhou, executando projetos sociais e colhendo os bons frutos da semente que plantou e cuidou.
Marlene Netto