Vamos à fonte:
— Sabiam que tem um lugar aqui no bairro que é cercado de magia?
É a Biblioteca Mágica. O nome foi escolhido pelos guardiões do espaço, o que faz dele um local bastante especial. Os guardiões são os leitores, mediadores e gestores. Há pessoas que participaram da fundação, promoveram e promovem atividades de leitura, convidam novos guardiões. Sei disso pois sou uma delas: — Prazer, me chamo Quézia.
— Ei, Quézia! O que está escrevendo nesse livro?
— Oi, Alice. Tô escrevendo uma história sobre a Biblioteca Mágica. Espero que possa vir comigo pra atividade de hoje.
— Vou sim. Hoje tenho um tempinho. Você sempre me diz que lá tem magia. Não vou ser transformada em vampiro ou em lobisomem, né?!
Quézia sorri.
— Não! Mas com certeza vai ver alguns. Na verdade vai conhecer muito além.
Sou amiga da Alice faz pouco tempo. Ela é nova no bairro. Nós moramos em Bairro de Maio. Mesmo lugar onde fica a biblioteca. Aqui é conhecido como Maloca, e fica na periferia de Nova Iguaçu. Comércios, escolas e outros bairros bem próximos têm as mesmas características. Além disso, existem casas sem banheiro ou alimentação. Um bairro perigoso, à noite não se pode dar bobeira. Alice cuida dos irmãos menores pra mãe trabalhar. Ainda não teve contato com a magia como eu. Hoje vou levá-la à fonte.
— Quézia, pode me falar mais um pouco…?
— Posso sim. A biblioteca está dentro do Centro Comunitário São Sebastião de Vila de Cava. Mais conhecido como Cecom. Existem muitas atividades lá. A biblioteca é a que mais me encanta! Lá podemos pegar livros emprestados, participar das atividades de leitura, escrever nossas histórias… Existem algumas coisas que a mediadora pode contar melhor. O mais legal é que hoje há mais livros, móveis, estantes, um computador para os registros e um bebedouro. Você vai gostar! Pode até convidar sua mãe e seus irmãos.
Percebi um brilho nos olhos de Alice. Acho que meus encantos de divulgação estão ficando mais fortes…
***
À tarde, saí com Alice para a biblioteca. O maior movimento é à tarde. No caminho, seguimos conversando sobre a história…
— Sabia que ela está dentro de uma Rede?
— Como assim Quézia?! A única rede que conheço é a de pesca.
Rimos um pouco. Apesar de termos 15 anos, Alice e eu passamos por muitas coisas desanimadoras na vida. Agora era tempo de nos animarmos e sorrir.
— Estar em Rede é estar ligado. Como uma rede de pesca mesmo. Antes nem era Rede. No início era Polo Baixada Literária. A ideia de se formar um Polo de Leitura nasceu da parceria com o Instituto C&A. As parcerias individuais com as bibliotecas estavam acabando e, em um encontro, o IC&A veio com a proposta de se fazer um trabalho em conjunto com outras bibliotecas, em Rede. Durante uma reunião surgiu o Polo Baixada Literária. Com o tempo viu-se que não tínhamos pernas para atender a toda a Baixada, mas o nome já havia se tornado uma identidade da Rede. Hoje, somos a Rede Baixada Literária.
— Como sabe de tudo isso, Quézia?!
— Tô há quatro anos na biblioteca! É importante saber a história daquilo que achamos importante em nossa vida. Além disso, sou uma das guardiãs… Espere até conhecer os demais…
— Oxe! Lá vem tu com esse papo de magia de novo.
— Vamos!
***
Percebi assim que cheguei à magia da Biblioteca. Digo isso pelo número de leitores que estavam no espaço. Deviam ser uns 25, entre crianças e adolescentes. Conversavam sobre os livros lidos, atividades literárias e coisas da vida. Aqui há diversas linguagens. Olhei para Alice e vi algo nela. Uma energia diferente. Seus olhos percorreram o espaço como alguém que ganha um presente muito desejado. Diversas pessoas chegaram aqui e demonstraram o mesmo olhar. De cara, reconheci Cristiane, Josué, Geandro e Thuan. Grandes guardiões leitores do espaço. Lucas Daniel não havia chegado. Ele é destaque na escola e um grande guardião.
— Vem, Alice! Vou te apresentar à mediadora Cláudia e aos meus amigos…
Cláudia estava de pé, organizando os novos livros que haviam chegado. Deu um grande abraço em Alice, que ficou impressionada. Aprendi que o afeto precisa ser revelado. Tive a mesma reação que Alice teve, anos atrás.
— Seja bem-vinda! Apresente-a ao pessoal, Quézia, e aos livros. Daqui a pouco começaremos a atividade…
— Tá legal. Oi, povo, como vocês estão? Essa é Alice. Futura guardiã e leitora.
Um a um se apresentaram, falando como seria legal se tudo desse certo.
Thuan contou das inúmeras atividades.
— Alice, você precisa participar do Acampe Literário! É uma atividade da Rede Baixada Literária em uma das bibliotecas. O primeiro foi aqui na Mágica, com conversas bem legais, sarau com histórias de terror, oficinas e até briga por travesseiros… Ainda as Tendas Literárias, os jogos, visita ao Salão do Livro, bate-papo com a autora ou o autor. Nossa, precisa conhecer o Tiago Kueques, ele é muito gente fina!
Geandro acrescentou:
— E há as festas pra arrecadar fundos para o espaço. Natália Reis organizava as coreografias pra gente dançar. Agora ela trabalha em outro local, mas foi uma supermediadora.
Josué logo emendou:
— Aconteceu o lançamento do livro “Contos da Baixada”, na Bienal 2017. Foi um importante acontecimento. Algumas crianças da biblioteca escreveram contos e hoje são autores. Um momento inesquecível foi quando vi o mar pela primeira vez, numa saída da BC para o Forte de Copacabana. Incrível!
Depois das apresentações mostramos os livros à Alice e todos os personagens favoritos.
Ela fez um comentário que me deixou bem animada.
— Caramba! Adorei esse espaço. Tem pufes, almofadas, é colorido. Fora os livros. Vi um ali que me chamou a atenção.
— Qual, Alice?
— Menina Bonita do Laço de Fita.
— Sim! É um livro bem legal. A mediadora Alana sempre lia pra gente. Hoje ela está em outro espaço. Muita gente já passou por aqui, Carla Alves, Alana, Lúcia Helena, Rafaela, Fabíola…
Cláudia, que estava prestando atenção à nossa conversa, pediu licença pra continuar.
— Muita gente mesmo. Pessoas bem importantes. Um lugar especial, que transborda magia. Por isso se chama Biblioteca Comunitária Mágica.
Cláudia continuou:
— Boa tarde, pessoal. Hoje temos uma convidada. Seja bem-vinda, Alice! Imagino que Quézia tenha falado bastante daqui. A biblioteca é da comunidade e para a comunidade. Fique à vontade. Como é importante contar o que é bom em nossa vida, vou falar um pouquinho.
— Quézia, você disse a mesma coisa pra mim hoje…
Dei um sorrisinho e continuei ouvindo Cláudia.
— No início era uma Brinquedoteca. Foi enviado um projeto para o IC&A, que fez a contraproposta de montar uma biblioteca. Na fundação, em 2006, havia poucas estantes e poucas cadeiras. A formação foi um ponto essencial para a história ser contada. As crianças escolheram o nome pelo lado da magia. Um chamativo foi trazer de forma lúdica a leitura para os participantes das atividades, como Mala Volante, Jogos Literários, Tendas, grande influência para outras pessoas.
Carla Alves, ex-mediadora, inventou a maioria das atividades, entre elas a Pipoca com Leitura, atividade antiga na qual se fazia mediação de leitura e depois se comia pipoca.
Lucas Gabriel chegou na hora:
— Fala da Mônica Palúcio pra ela, tia…
— Boa tarde, Lucas! Quando a biblioteca foi fundada, as mediadoras antigas foram ao Colégio Orestes para a atividade chamada “A hora do conto”. Nela se declamava poesia e depois se convidavam os alunos para visitar a biblioteca. A professora Mônica Palúcio fazia na escola uma atividade chamada “Pare e Leia”. A biblioteca e a escola formaram uma parceria. Lembro-me de termos um público de 800 crianças em uma das atividades. O trabalho rendeu um prêmio em parceria com a escola. Alguém quer falar mais um pouquinho?
Bia estava em silêncio. Estava…
— A tia Cláudia participa de muitas formações, e isso é importante para as boas atividades e para continuarmos existindo. Um espaço no qual se pode refletir. Espero que possa falar para outras pessoas que ainda não o conhecem. Muitas coisas boas já aconteceram por causa do trabalho que a Rede Baixada faz. Por exemplo, a aprovação do PMLLLB.
Alice olhou pra mim questionando.
— Plano Municipal do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas de Nova Iguaçu. Uma lei importante, com metas e ações de curto, médio e longo prazo, para garantir a democratização do livro, leitura, literatura e bibliotecas na cidade.
Agora foi o Thuan:
— É muita informação para um dia só, pode dar bug.
Cláudia deu uma olhada no relógio:
— A Alice vai conhecer mais com o tempo a nossa história. Vamos fazer seu cadastro para levar livros depois da atividade. Espero que se encante pela magia. Não vai ser transformada em vampiro ou lobisomem. Apenas em uma grande leitora. Bora começar o bingo humano…!
Alice sorriu de orelha a orelha. Senti que a magia estava nela como em mim no primeiro dia.
***
Algum tempo depois…
Sabiam que há um lugar no bairro cercado de magia? Com guardiões que fazem parte da comunidade. Sei disso, pois sou uma…
— Ei, Alice! O que está escrevendo nesse livro?!
Autora:
Carla Silva (Carla Méri Santos da Silva), nasceu e cresceu no município de Nova Iguaçu. Integra a Rede Baixada Literária desde 2010, atua como sistematizadora no programa Entre-Redes (RNBC) e como professora de Desenho Artístico. As histórias trazidas pela literatura e as experiências na Rede foram grandes incentivos que a levaram a escrever e ilustrar.