Na correria do dia acabamos nos esquecendo de parar, respirar profundamente e nos deixar tocar pelas lembranças suscitadas com o sopro do vento, o cheiro de um perfume de alguém que passou. Hoje, por meio do que escrevo em forma de poesia, conto e crônica, trago bons momentos do que está grudado em minha mente, em meu corpo. Mistura de emoções, lembranças que se entrelaçam com o ontem, o hoje, com o agora.
Escrevendo este texto meterei os pés pelas mãos a fim de lhes contar como me descobri cheia de palavras na ponta dos dedos. A narrativa que me leva ao meu descobrimento como amante das palavras inicia-se com as lembranças das histórias que meus pais contavam sobre nosso lar e desdobra-se com a descoberta de um lugar ainda mais cheio de histórias.
Mamãe dizia que nosso Bairro Padre Andrade nasceu em decorrência de apossamento. O nome homenageia um padre franciscano, Antônio Juvêncio de Andrade, enormemente querido pelos moradores, considerado o primeiro educador do local e responsável pela construção da Igreja Nossa Senhora de Fátima, que ainda hoje existe.
Uma fábrica que na época funcionava e uma família dona de um sítio brigavam pelo terreno (hoje é o bairro). Nessa briga a prefeitura interveio após um estudo que identificou a lagoa existente no local como patrimônio público. A administração pública ficou como dona do terreno, mas deixou-o abandonado. As famílias – sem ter onde morar, chegaram ao terreno vazio e construíram a casa.
Mas não foi tão simples a permanência. Houve luta pelo terreno com a prefeitura; as pessoas eram obrigadas a sair e o faziam, mas retornavam. Até a prefeitura abrir mão pela quantidade de pessoas, o poder público não conseguiu mais dar conta.
Chove, é inverno, e aqui no Ceará há uma mistura de calor com um tempinho que traz algumas horas de sombra e frescor. E nesse clima cheio lembro-me de quando ia à biblioteca aqui do meu bairro, na hora da mediação. Às vezes as tias contavam umas lendas… Entre elas, a que eu mais gostava: a da cobra Isaura, moça muito bonita, amaldiçoada por uma jovem por causa de inveja, e transformada em cobra. Alguns moradores falam que já a viram.
Dizem que um senhor, conhecido como Luís, certo dia foi à sua plantação e se deparou com uma cobra gigantesca de dois metros. Sua mulher, dona Valderina, preocupada com o marido, pois já era noite e ele ainda não havia chegado, foi à sua procura, com os filhos. Chegando à plantação o encontrou desmaiado, e ele afirma que desmaiou por ter visto uma cobra enorme – olhou em seus olhos e ainda o cumprimentou. Outra história que sai aos montes em cima dessa lenda é que quando um motorista de uma das máquinas que escavavam e tiravam os lixos da lagoa – na época a prefeitura resolveu limpar a lagoa, porque antes ela estava aterrada com tanto lixo -, foi surpreendido ao levantar a pá do trator e ter visto a cobra Isaura enrolada no equipamento.
Em uma pausa para preparar meu chá que com seu gosto suaviza os pensamentos, vem do bule um cheiro forte e calmo, com lembranças da bagunça no quintal da minha avó e a correria para ver quem subia mais rápido no pé de cajueiro. Salta da minha memória essa cena, fervendo água e cozinhando as folhas e a hortelã.
Retornando à escrita percebo como fui feliz na minha infância: brincadeiras de roda, pique-pega, desenhos animados na televisão, banho de chuva e um deleitar-me no aconchego das histórias que ouvia e depois das que eu mesma passei a ler e hoje posso contar. Na biblioteca do meu bairro me encontrei sortuda por conhecer tantas coisas em um espaço pequeno, aconchegante e acolhedor.
Lembro-me que minha mãe me levava para as atividades da instituição, mas era na biblioteca que meu corpo todo estremecia de alegria. Sabia que encontraria um emaranhado de aventuras, de reviravoltas e de cenas apaixonantes.
Em uma pesquisa que fiz para a escola sobre a Biblioteca Comunitária Famílias Reunidas descobri sua fundação e outras coisas que nem fazia ideia. A biblioteca nasceu em decorrência da necessidade de abrir um espaço de pesquisa que atenderia às demandas de trabalhos escolares que crianças do reforço escolar traziam, determinadas pela instituição.
O espaço foi pensado como apoio para pesquisa escolar. A biblioteca, portanto, não foi pensada e planejada, mas aos poucos tomou forma de biblioteca. Nela, hoje, trabalha-se com mediação de leitura para crianças, adolescentes e jovens, cinema, oficinas de leituras… Os empréstimos de livros cada vez aumentam mais, e isso é bonito de se ver: os livros compartilhados voltam para a biblioteca e chegam cheios de experiências vividas com quem os leu.
Um nascimento espontâneo, mas para continuar sua longa vida uniu-se a um coletivo de bibliotecas comunitárias, Rede de Leitura Jangada Literária, aqui do Ceará. Acreditam que a leitura é um direito humano que precisa ser garantido a todos. Lutam, manifestam-se e resistem.
Resistência é o que não falta, e com isso doçura, sonhos, cultura, educação e arte, em meio a uma realidade de violência e insegurança. Embate contínuo entre a polícia e traficantes. As pessoas que aqui moram estão sujeitas a bala perdida e abuso de poder. Entre tiros, fugas e medo… um refúgio. Entre os livros dessa biblioteca que nasceu de forma tão descontraída me encontrei princesa, guerreira, pássaro, céu…
Havia em mim a mistura de ousadia; ansiava ser os personagens fortes que vão para o embate cheios de coragem quando os propósitos são de vida melhor. Desejo essa força para todos nós.
E me abrigava na biblioteca quando queria fugir das brigas entre meus pais, sentia-me segura lá e voltava mais plena para casa. Adorava quando aconteciam os saraus Quero Mais Leitura, mistura de dança, música, poesia e dramas ensaiados. Na Kombi Literária, projeto em parceria com outras bibliotecas, via os colegas da escola se deliciarem com essa invenção, que levava contação de histórias e uma pequena parte do acervo das bibliotecas para exposição e leitura.
Nas aventuranças até chegar aqui frente a um computador, tentando escrever como me descobri amante das palavras, recordo com entusiasmo de uma festa halloween que a biblioteca promoveu. Mas de onde é que vem essa lembrança? Nada aqui me faz voltar o halloween, talvez por estar sentindo um frio na barriga. Frio na barriga que senti também naquele dia. Histórias de terror e algumas crianças com gracinhas dizendo que estavam vendo assombrações. Coisas que acontecem na biblioteca, imaginação para todo lado.
Uns se descobrem pintores, fotógrafos, amantes da culinária; outros cantam e encantam, nas pontas dos pés ou com passos explosivos. Afinal, quem dança domina os olhares com o corpo e o ritmo… e por aí vai. Eu me descobri amante das palavras, da escrita, das poesias, das histórias de aventura e cheia de romances. Foi na Biblioteca Comunitária Famílias Reunidas esse ponto de luz que encontrei – livros em diversos gêneros. Aconchego. Tias mediadoras que me fascinam na arte de contar histórias e ler os livros com grande estima.
Encontrei-me! Agora não estou só. Admiro as palavras e sou amante delas, das rimas, dos suspenses desvendados, das criações científicas detalhadas, mas sou parte dessa misturada toda de histórias que brotam dos pensamentos, sentimentos, experiências. E são passadas para o papel. Você também agora é parte de tudo isso, desde que começou a ler este texto com divagações e realidade. Quando lemos nos misturamos numa liga forte, e quando nos tornamos essa liga forte o mundo é nosso!