Os caminhos sinuosos desta história rondam e encantam como serpente.
Navegam na beira do ouvido e do coração da gente, palavras armadas com o cheiro da floresta, do frio úmido do igarapé. Peço licença, tiro os sapatos para falar sobre um lugar em que os rios são ruas e os bairros têm nome de rio, como o bairro da nossa história: Guamá, que significa “rio que chora”. Peço licença para falar sobre uma rua que tem memória e que me contou esta história entre sussurros e burburinhos.
Entre sussurros e burburinhos a rua observava a mesma coisa todos os dias, seja nos relógios que despertavam com o sol, os filhos despertados pelos pais ou a rua despertada pela caminhada dos carros, dos tantos que andavam para o trabalho ou das crianças que iam para a escola.
Mas nada disso era divertido ou mesmo interessante; bom mesmo era espiar as crianças que não iam para a escola e ficavam por ali, brincando e se divertindo com o pira-se-esconde, pira-garrafão, futebol, pira-pega, elástico, taco, bandeirinha e tantas outras coisas quanto a imaginação e a rua permitiam.
Mas chegou um dia, duas irmãs que tiraram os mandos da rua, elas eram tão diferentes que mesmo no meio da multidão se podia dizer quem elas eram, não só pela aparência, mas pelo modo de falar. Falavam engraçado, e a rua começou a espiar, de fofoqueiras que eram, o que faziam aquelas duas. Uma delas falava como se sussurrasse, e por isso a rua a chamava de “Sussurro”; a outra falava como um bando de burburinho, e por isso era chamada de “Burburinho”. Sussurro, apesar de falar baixo, era a irmã mais alta, e Burburinho, apesar de falar alto era a irmã mais baixa.
Assim como a rua fofoqueira observava as irmãs, elas também observavam a rua, e as três ficavam assim, uma observando a outra. As irmãs perceberam que a rua maltratava as crianças que viviam nela. Apesar de dar asas para a imaginação brincar, fazia as crianças fugir da escola. Pensavam apenas em brincar. E encantava as crianças para elas não pensarem mais em nada, só em ficar fora de casa.
As irmãs então resolveram usar sua mágica para competir com o encanto poderoso da rua. Primeiramente fizeram uma casa e disseram que todos os que entrassem ganhariam pássaros que as fariam voar para qualquer lugar do mundo. Algumas crianças viram que realmente era verdade, e contaram para as demais, e assim várias e várias crianças saíam do domínio da rua e começavam a se encantar pela magia da casa.
Dentro da casa só se ouviam sussurros e burburinhos contando histórias de todos os lugares do mundo para todo mundo que as queria ouvir.
Eram tantas pessoas entrando que a rua resolveu espiar para ver o que estava acontecendo. Quando a rua olhou percebeu que as irmãs realmente tinham pássaros nas mãos, mas era um pássaro diferente, um pássaro feito de páginas, páginas coloridas, que davam beleza às asas do pássaro… As asas do pássaro sobrevoavam a cabeça das crianças e se transformavam em janelas, as crianças pulavam todas para dentro da janela e voavam para longe, bem longe, bem longe…
Para o Japão, para a Índia, para a África, para o Alasca, para o Deserto do Saara, para… tantos lugares que a rua perdeu a conta.
Quanto mais crianças entravam na casa mágica, menos tempo elas brincavam na rua; a rua estava ficando com muito ciúme. Tanto, mas tanto ciúme, que não conseguiu se controlar e começou a ficar com raiva, muita raiva, com tanta raiva que ela começou a esquentar, e esquentou tanto que o céu começou a fechar, e uma chuva de tristeza estava prestes a cair, a chuva de tristeza cai quando as ruas ficam com raiva, e em Belém às vezes cai um temporal… Assim foi naquela tarde.
Pingo, pingo, pingo, pingo, pingo, pingo, pingo, pingo, pingo, pingo, pingo, pingo, pingo… chuva de tristeza… e todas as pessoas do Guamá buscavam abrigo, mas as casas não eram o bastante para abrigá-las de uma chuva de tristeza… A chuva de tristeza atravessa parede, atravessa fronteira, atravessa o coração da gente. As crianças então foram pedir ajuda às irmãs. E elas muitas vezes eram as únicas que conseguiam ajudar quem estava triste. Esfregaram as mãos e fizeram um telhado feito de páginas… Assim, as gotas de água que caíam nas páginas ficavam cheias de tinta, e o que era tristeza se transformava em alegria, o que era angústia se transformava em confiança e fé, o que era dor se transformava em esperança, e assim foi até a chuva passar, e assim foi todas as vezes que a chuva caía.
A Rua então resolveu chamar o Vento para resolver a confusão. O Vento chegou espalhando tudo, jogou todos os livros no chão, os lençóis dos varais voaram como bandeiras, e as janelas faziam novas brincadeiras. As crianças corriam com medo do Vento… Chegaram à casa encantada e as irmãs estavam preparadas: abriram a janela encantada que as levaria a outros lugares. E naquele dia… aaaah, foi naquele dia que as crianças todas conheceram o oceano, as páginas da janela mostravam um oceano e contavam a história de um menino feito de madeira… aaaah, que delícia era o vento do oceano.
Um dos meninos saiu com o oceano nos olhos, era um menino pretinho como a noite. Ele não sabia, mas o oceano encheria seus olhos a vida inteira, e as águas que jorrariam da sua boca encantariam mais e mais pessoas por todo o mundo. Mas a Rua ainda não havia desistido das crianças.
A Rua caminhava já cansada. Faria uma última tentativa: chamou sua amiga Noite. A Noite é a pior inimiga das crianças e dos velhinhos, ela é a rainha de todos os monstros, medos e mistérios. Assim, a Noite e a Rua caminhavam juntas, o silêncio delas fazia muito barulho, os monstros gemiam como grilos e sapos, os mistérios ecoavam como o Vento, batiam portas repentinas, esvoaçavam cortinas, balançavam telhados, amedrontavam meninas e meninos.
As irmãs, sabendo dos perigos da Noite, esperaram algumas crianças acordar; àquela altura havia crianças que já moravam com elas na casa… Crianças da casa, não eram mais crianças da Rua. Quando essas crianças acordaram perseguidas pelas assombrações da sombra da noite, a irmã “Sussurro” estava com uma janela de páginas que mostrava uma lua cheia enorme, rodeada de estrelas. A irmã “Burburinho” estava com outra janela aberta, na qual havia uma fogueira enorme, um Griot (guardião da tradição oral dos povos) sentado com muitas crianças pretinhas africanas, e todas estavam com estrelas nos olhos, e as crianças naquela noite também ficaram com estrelas nos olhos…
Logo em seguida uma menina se deitou em uma ponte de madeira na beira do rio e ficou olhando as estrelas, imaginando as histórias tantas que ouvira naquela Noite, imaginando as tantas histórias daquele céu e daquela lua, que ajudariam a menina nas palavras. Essa menina levaria as estrelas a vida toda e contaria histórias que transbordariam rios dos olhos das pessoas por toda a vida.
E assim a casa começou a ser chamada de Nossa, as crianças ganharam novos olhos, novas lentes, novos filtros. Suas palavras passaram a ser inundadas de encanto e magia. Então cresceram e entenderam que a casa era na verdade uma biblioteca, e a chamavam, agora, de Nossa Biblioteca. Novas pessoas se aproximaram, as crianças agora eram adultas, e com olhos e talentos transformaram Nossa Biblioteca em um Espaço de Cultura vibrante.
E a Rua? A Rua, de tanto espiar e tentar encantar as crianças, acabou encantada por elas, e hoje é uma Rua de Leitura. Continua admirada pelas coisas que acontecem dentro da casa encantada. Continua sendo muito fofoqueira, tão fofoqueira que contou para todas as Ruas de Belém, e agora a cidade inteira conhece sua história…
E as irmãs? Irmã “Burburinho” se apaixonou por uma nuvem e resolveu viver seu amor no céu junto com ela. Os céus brilham todos os finais de tarde com o amor rosa dos dois. A irmã “Sussurro” resolveu morar na palavra, um dia cada parte do seu corpo se transformou em uma palavra, eram palavras lindas – amor, gratidão, amizade, honra, afeto… Várias palavras lindas, palavras que encantaram o Vento, e eles seguem felizes, voando burburentos por aí…
E as crianças? Seguem cuidando da nova casa, acolhendo quem chega, encantando outras crianças grandes, pequenas, médias, falando sobre o direito de ter acesso a essas tantas janelas mágicas, o Direito ao Livro e à Leitura, e lutando para a cidade inteira ser tomada pelos segredos que elas descobriram, segredo escondido não tem graça… Hoje uma delas veio contar esta história.
Autores:
Henrique Lobato, contador de histórias, mediador de leitura, poeta, estudante de letras – UFPA, colaborador do ECNB.
Valdecira Maciel, mediadora de leitura, economista – UFPA, associada e coordenadora do ECNB, sistematizadora do Programa Entre-Redes (RNBC).