É sexta à tarde e o dia em poucas horas findará. Uma semana corrida com abraços calorosos de chegada e de despedida. Risadas entre as refeições, e uma vez ou outra um “eita, que tem é coisa para fazer!”. Com o final de semana dois dias para pôr em ordem a casa e assuntos pessoais. E resolver os que maioria das vezes são adiados para o sábado que vem…
Paro no meio da sala como em um ritual para lembrar o que estava prestes a fazer. Catalogar, classificar, limpar, organizar o acervo, planejar atividades… um mundo de coisas. À minha frente está a mulher das cavernas de pelúcia que me encara, caminho até sua direção e a pego. Tem um rosto engraçado. Cada detalhe pensado com afeto para todo o espaço ser contagiado.
Em “cada detalhe” umas linhas são traçadas, bordando a história do lugar que nasceu a partir da crença de que os livros, a leitura e a literatura contribuem significativamente para o desenvolvimento pessoal e social. Em especial das crianças. E o que era crença transformou-se em Biblioteca Comunitária Criança Feliz. As transformações incluem desafios superados com esperança, força, paciência e boa dose de café. Bem, para os amantes de café, é claro.
Convencida estou que uma história devo lhes narrar, não apenas por ser um dos meus ofícios – mediar histórias e/ou contá-las. Faço isso, pois as histórias, como raízes que nos firmam em nossa existência, são igualmente sementes carregadas pelo vento, que buscam solo fértil. Somos o solo, e cada história tem a forma de germinar. Não será apenas um enredo mágico como em literatura fantástica, cheia de seres de outros universos. É a força materializada nas paredes, livros, estantes que se perpetuam na existência de quem se delicia ao se descobrir amante das palavras, dos romances que apaixonam e das chateações em cima da trama que não deveria ter matado o protagonista.
Na história não será aumentado um ponto. Tudo será pela força das vivências que permeiam este lugar. O mundo precisa conhecer e saborear uma aventura cheia de dramas, humor e paixão que foi fundar uma biblioteca.
Em 1994… viva a biblioteca! Fundada nesse ano, até com uma simbólica cerimônia de inauguração. Funcionamento apenas interno, e em 2003 enfim nos expandimos. Viva! Biblioteca para todo mundo! De casa nova, novos ares. Uma construção que começou em 2001, antes um lugar pequeno e improvisado. Agora a biblioteca estava em seu próprio espaço, planejado, muito desejado, esperado e mais uma vez festa, reinauguração.
A ideia foi simples: comprar uns cinco livros, levá-los às crianças do reforço escolar do Projeto Social Criança Feliz e ver o que aconteceria. Daí, de ideia simples para ver o que aconteceria, as crianças gostaram tanto que outros livros foram se achegando. A professora trabalhava com carinho, contação de histórias era uma festa. De tanto lerem Bruxonilda hoje há na biblioteca uma pilha deles que testemunham o início.
Início sustentado pela esperança de que a leitura abrisse caminhos. O espaço de leitura era apenas de funcionamento interno da instituição, pois era bem pequeno, um acervo que não dava para ser emprestado, uma quantidade irrisória. Até as intenções com mais acervo serem ouvidas. Bendito universo atento às vozes que suplicam. Em alto-falantes ou no silêncio gritante dos desejos. Uma turma da universidade que estagiavam na instituição promoveu uma campanha para doação de livros – “Doe livros, não dói nada”. Arrecadaram mil livros. Um salto e tanto que animou ainda mais os envolvidos na causa pela leitura.
Certo dia, conversando com uma jovem que hoje também trabalha em uma biblioteca comunitária, falou das descobertas na Biblioteca Comunitária Criança Feliz. Da sua experiência pessoal ao se enlaçar nos livros. Uma história que começa com tragédia, mas superada com resistência. Quando criança, perdeu o pai assassinado em frente à sua casa. Tinha nove anos e vinha contando as ruas até chegar à biblioteca. Os livros, a leitura, a literatura a salvaram em um momento muito difícil em sua infância. Bruxonilda era sua leitura favorita, e mais uma vez Bruxonilda testemunhando o percurso…
No silêncio da biblioteca que hoje, sexta-feira, está apenas com funcionamento interno, dia de planejamento, ouço leves batidas na porta, como quem pergunta se havia alguém aí. Peço que entre, e uma mulher esbaforida começa a gesticular, pedindo desculpas por interromper, mas ela precisava que eu fizesse um favor e emprestasse livros. Seu jovem filho recentemente teve meningite, acamado, e o que lhe fazia companhia eram os livros. Com simpatia a deixo livre para escolher o que deseja. Depois de percorrer os dedos entre as lombadas vendo um que imaginava agradar ao filho, já conhecendo seus gostos, traz para mim dois exemplares com histórias de romance policial.
Pergunta sobre as atividades da biblioteca – uma vizinha está interessada em trazer a filha. “Então… a biblioteca promove semanalmente mediações de leitura às terças e quartas-feiras, diariamente fazemos empréstimos de livro, e domingo que vem, passando este, pela manhã teremos o Pé Na Rua. O Pé Na Rua a senhora sabe, né? É aquela atividade que fechamos a rua daqui da instituição, e aí acontecem atividades bem variadas. Por exemplo, as esportivas e tendas para leitura”. Com um sorriso afetuoso me agradece pelos livros e pelas informações. Sai da biblioteca como premiada pela sorte nesse momento frágil do filho.
Vou lanchar e reparo que já são quase dezesseis horas. O céu ainda claro traz uma boa sensação de semana bem vivida. Tive muitas surpresas, experiências imensuráveis que energizam os dias. Acolhi nesses dias a gratidão de uma mãe que relatou empolgada as mudanças na filha. De menina tímida que não queria ficar sem a mãe nas mediações de leitura a uma menina extrovertida que agora a mãe disse com humor não sabe mais como desligar. Menina, o mundo é seu!
Retorno à sala e sento novamente, confortavelmente, em frente ao computador. Digito mais palavras que dão continuidade a essa jornada. Trabalhar em biblioteca comunitária é uma mistura de lúdico, militância, escuta, acolhimento, hora da história, resistir sempre. Na misturada vamos vendo o mundo afora dando voltas no tempo, passeando pelas narrações.
Assim, a biblioteca vai com a Kombi Literária, que se transforma em um castelo medieval e passeia pelas ruas da instituição, levando contação de histórias. Com o Itinerarte, as escolas do bairro recebem contação de história e mediação de leitura. Histórias e Quintais é uma atividade da instituição que a biblioteca contribui. Atividade em um quintal familiar, ou outras instituições com espaço grande e aberto. As pessoas contam histórias e memórias. No movimento de saída a biblioteca se faz presença forte dentro da comunidade.
A partir da entrada da biblioteca para a Rede Jangada Literária foi possível compreender a organização do espaço, ampliar o acervo, melhorar a mobília, ter uma pessoa fixa para trabalhar na biblioteca, nas mediações de leitura e atividades literárias. Integrar a Rede fortaleceu a existência da biblioteca na comunidade e contribuiu com o processo de conscientização do seu papel. Começando um trabalho de incidência política pela leitura como direito humano.
Em meio à insegurança do bairro, a biblioteca é importante por ser um equipamento que difunde para a comunidade um espaço de cultura, de aprendizado e novas possibilidades. As famílias encontram um lugar diferente, aconchegante e inspirador. Inspiração que extravasa e dá lugar a novas descobertas. De si e do mundo.
O sol vai sumindo e marca o final da tarde. Não termino a história com um ponto final, mas prossegue com reticências. Gratidão pela semana, pelo dia, pela tarde que finda e por uma noite que logo, logo chegará. Gratidão pelas pessoas envolvidas que acreditaram e continuam acreditando na força na biblioteca firmada em concreto e livre em cada pessoa que é um universo.