A tarde estava quente, Silvia chega. A primeira coisa que faz é abrir as janelas. Gosta de deixar a luz do dia entrar, para o ambiente ficar agradável, esperando as crianças. Após abrir tudo, confere as ações previstas no planejamento diário: um pouco de brincadeira no parquinho, duas cantigas, duas mediações de leitura – uma para os menores e outra para os maiores, jogos educativos, e quem sabe, podemos acrescentar… Seus pensamentos foram interrompidos por um grito.
– Tia Silvia, tia Silvia, tia Silviiiaaaaaaaaaaaaaa!!!! – gritava Aline, depois de passar pela rampa de entrada da biblioteca, mais rápida do que uma bala. Não levou mais de três segundos para fazer o percurso do portão até a porta de entrada.
– O que houve, menina?! Aconteceu alguma coisa? Está machucada?
– Tirei 8.5 na prova de Matemática, 8.5! Nunca tinha conseguido uma nota tão alta, a senhora acredita?!
A monitora olhava para a garota com os olhos brilhantes e um sorriso intenso. Em sua mão, a prova do acontecido: duas folhas com os números 8.5 escritos em vermelho, bem no topo.
– Me dá isso aqui, deixe ver se é a sua letra mesmo… Silvia tinha um sorriso meio “debochado”. Deu uma olhada rápida nas questões, e imediatamente identificou matérias estudadas na tarde anterior, passada e repassada todo o mês. Silvia lembrava-se do que sua mãe fazia e tinha o desejo de repetir a forma dura como havia sido criada. “Se ela tivesse prestado atenção nesse número não teria errado a questão”, pensa. Mas antes de falar alguma coisa, olha para a menina, que sorri de forma tão exuberante, parecia ter um dos maiores tesouros de sua vida nas mãos. Silvia muda de ideia.
– PARABÉNS! Isso mesmo, nossa Matemática da semana!
Silvia sorri, dá um abraço na menina:
– Você se esforçou muito para chegar a esse ponto, fico feliz que tenha conseguido.
Aline iniciou o ano não querendo frequentar a escola. Era uma menina “problemática”, as notas estavam sempre no vermelho. Estudar era impossível. A menina mora ao lado de uma cachoeira e não percorria mais de 30 metros para chegar à sua margem. As tardes eram reservadas para brincar nas águas geladas. Quando não podia ir, usava o tempo assistindo à televisão ou brincando com as crianças vizinhas. Uma agenda muito cheia para ainda ter que acrescentar os estudos. Bastava já ter que gastar toda a manhã na escola.
Ela passou a frequentar a biblioteca somente no inverno, pois com a água muito fria o pai a proibia de ir à cachoeira. Com isso precisava ter algo para ocupar o tempo ocioso. Os estudos durante o inverno renderam alguns trabalhos e mudança no boletim, que passou a ter mais notas azuis. No mês anterior, chegou tímida, caderno na mão, e disse para a monitora que tinha que fazer a última prova de Matemática do ano. Mesmo sabendo que já estava reprovada, gostaria de tentar melhorar a nota. Silvia, imediatamente, largou o planejamento que tinha e sentou com a menina para estudar a matéria que mais detestava. “Por ela, valia a pena”, pensava.
– Nunca tirei uma nota boa em Matemática, o professor achou que tinha dado um jeito de colar, mas não colei, sentei bem na frente dele para não me distrair com minha turma de amigos, que fica na “cozinha”. Tia, alguns alunos perguntaram onde estou fazendo as lições. E falei que era aqui na biblioteca. Expliquei que foi aqui que aprendi a fazer minhas pesquisas no Google, onde imprimo minhas atividades. Mostrei como a senhora me ajudou a pesquisar de forma diferente e como não me deixava simplesmente “recortar e colar”. Sempre tenho que fazer resumos.
A menina falou com ar de reprovação. E não me deixou entregar sem colocar a fonte de onde retirei o que pesquisei.
– Fico feliz em saber que está aprendendo tanto aqui com a gente, mas vejo que não comentou sobre o teclado, xilofone, os filmes do cineminha, partidas de xadrez, nossas atividades recreativas com o parquinho e outras.
– E o sarau!
A menina exclamou, dando um pulo alegre.
– A senhora poderia me contar um pouco mais sobre a biblioteca, amo ouvir suas histórias.
– Claro que sim, linda. Mas acho que podemos fazer um pouco melhor. Que tal um programa de auditório aqui na biblioteca, com gravação, cadeira, mesinha de centro e copo de água? Podemos arrumar alguém para nos ajudar na produção…
– Ótima ideia, podemos fazer igual àquele que tem na TV?
– Lógico, mas qual seria o nome… “Aline e suas dúvidas”?
– Ai, credo, tia! Que tal “Conversa com Aline”?
– Ou “Quem conta um conto, aumenta um ponto…”?
– Gostei! Mas está muito grande. Podemos ficar com o “Quem conta um conto…”
– Perfeito.
– Vamos montar as perguntas hoje, convide os amigos da escola e vizinhos. Vamos contar contos para todos os que não conhecem nossa biblioteca. Podemos marcar para sexta-feira.
Na sexta, estava tudo pronto – duas grandes poltronas da casa da vizinha, a mesa de centro que tinha na biblioteca e várias cadeiras para os visitantes. Marquinho era o cameraman, tinha acabado de se formar na turma de Audiovisual do Instituto Colibri. O rapaz estava muito empolgado com seu primeiro trabalho de produção. Silvia tinha chamado representantes de todas as bibliotecas comunitárias da Rede Mar de Leitores – grupo do qual era membro ativa – e professoras da escola do bairro, também parceira da biblioteca. Duas mães levaram bolo e combinaram com o pai de um dos meninos para levar suco de caju. O que era para ser uma simples brincadeira se tornou um evento, com coffe break e tudo.
As coisas organizadas, cadeiras posicionadas, copos d’água na mesa, câmera ligada, Marquinho dá sinal para Aline iniciar a entrevista.
– Boa tarde! Para os que não me conhecem sou Aline…
A maioria da plateia dá um leve sorriso.
– Estamos aqui direta…ta..ta..mente da Biblioteca Comunitária Colibri para saber um pou…uuuco mais sobre este local mara..ra…vilhosssso que temos aqui em nossa comuniiiii…dade.
Bastante nervosa, Aline lê o texto com dificuldade, olha para Marquinho como se estivesse pedindo ajuda e seus olhos ficam cheios de lágrimas. O rapaz entende o recado e como um bom diretor de programa toma as rédeas da situação.
– Pessoal, esta é a primeira vez de nossa entrevistadora. O que vocês acham de iniciar de novo, podemos?
Toda a plateia respondeu com um grande SIMMMMM!!
– Vai lá, linda, fale de novo com suas palavras.
Aline respira fundo e recomeça.
– Oi, gente! Eu amo este lugar e acho que todos nós devemos saber um pouco mais sobre ele. Aí, eu e a tia Silvia montamos o programa para contar um pouco. Então, acho que é legal chamar a tia Silvia agora, né? Tia Silvia, entra aí.
Silvia entra rindo junto com a plateia, senta na cadeira ao lado de Aline e procura ajudar a menina, que parece menos nervosa.
– Boa noite, pessoal! É uma grande honra ter todos aqui em nosso espaço, feito para vocês e que não existiria sem vocês.
– Tia, conta pra gente… Faz quanto tempo a biblioteca existe?
Silvia dá um sorriso, anota alguma coisa no papel e entrega a Aline. A menina amassa o papel e o coloca no ouvido.
– Pessoal, acabei de receber uma informação aqui no meu ponto, comecei com a pergunta errada. Vou ter que refazer, ok?
Depois de algumas gargalhadas, a menina faz uma nova pergunta.
– Tia Silvia, por que uma biblioteca no bairro da Ponte Branca?
– Vamos falar um pouquinho sobre nosso bairro. Quem sabe por que o nome é Ponte Branca?
– Por causa da ponte que é branca, responde uma das crianças.
– Perfeito! É isso mesmo. Sempre tivemos essa ponte por onde antes só passavam pessoas e cavalos. Agora podem passar carros e caminhões. Todos sabemos que nosso bairro existe desde o Brasil Colonial. Dona Maria me contou que ouvia histórias sobre as tropas que passavam por aqui levando escravos e trazendo ouro de Minas Gerais. Por algum tempo foi visto como local violento, mas com o passar dos anos foi ficando cada vez melhor. Estamos em um bairro pequeno, nossa escola foi fechada há mais de 13 anos, e o governo não se importa em reabri-la, obrigando as crianças a ir de ônibus para a escola do bairro mais próximo, pois não dá para ir a pé.
Continuou:
– Não temos escolas particulares, nosso comércio é pequeno, não temos praça, nem outros locais de lazer. Sei que vocês têm a cachoeira do nosso maravilhoso rio Perequê-açu, mas não tem onde ver um filme junto com a galera, não tem parquinho para os pequenos, nem um local para fazer uma pesquisa escolar. A biblioteca comunitária aqui no bairro serve para isso e muito mais. O melhor é que tudo é de graça.
– De quem foi a ideia de criar um lugar tão legal como esse?
– Foi da Bernadete, quando veio a ideia ela já era presidente do Instituto Colibri, uma instituição que trabalha em várias áreas sociais. São cursos de artesanato, culinária, audiovisual e o projeto “Meu Rumo”, que ajuda jovens em situação de vulnerabilidade. Na época, ela trabalhava na Casa Azul e atuava diretamente com a FLIP e a Flipinha. Para quem não sabe, Flipinha é a parte infantil da FLIP. Como morava aqui na Ponte Branca, resolveu trazer um pouco do que via e vivia lá na cidade para o nosso meio. As pessoas chamam aqui de área rural. Ela ficava triste ao ver que jovens, como vocês, só tinham a oportunidade de ficar na cachoeira. Se quisessem fazer qualquer outra coisa, teriam que percorrer mais de quatro quilômetros até a cidade.
– Há quanto tempo a biblioteca existe?
– Em 2011, nós a abrimos, após ganhar o edital do Cine + Cultura, exibindo filmes para crianças e adultos. Em 2012, a Associação Casa Azul nos doou livros e estantes. Com esse acervo iniciamos o que temos aqui. Hoje somos Biblioteca Comunitária, Pontinho de Cultura e Ponte de Leitura. Antes não tínhamos o parquinho, mas depois de alguma ajuda o construímos.
– Por que esse nome de passarinho?
– O nome veio da instituição, Instituto Colibri. Já o nome do instituto veio da lenda do colibri, vocês conhecem?
A maioria balançou a cabeça negativamente.
– Conta essa, tia!, pediu Aline, os olhos brilhando.
– Ok! Vamos lá.
– O nome é a Lenda do Colibri. Contam os antigos que em uma imensa floresta viviam milhares de animais que desfrutavam daquele lugar maravilhoso. Um dia, uma enorme coluna de fumaça foi avistada ao longe. Em pouco tempo, embalada pelo vento, as chamas já eram visíveis pelas copas das árvores. Os animais, para se salvar do incêndio, começaram a correr, fugindo… Eis que, naquele momento, uma cena muito estranha acontecia. Um beija-flor voava da cachoeira ao fogo, levando gotas de água em seu pequeno bico, tentando amenizar o grande incêndio. O elefante, admirado com tamanha coragem, aproximou-se e perguntou: “Seu beija-flor, o senhor está ficando louco?! Não está vendo que não vai conseguir apagar esse incêndio com gotinhas de água? Fuja enquanto é tempo! Não percebe o perigo que está correndo?! Se retardar a sua fuga, talvez não haja mais tempo de salvar a si próprio! O que você está fazendo de tão importante…?!”
E o beija-flor respondeu: “Sei que apagar o incêndio não é apenas problema meu, senhor elefante. Apenas estou fazendo a minha parte. Preciso deste lugar para viver e estou dando a minha contribuição para salvá-lo! O senhor elefante tem razão quando diz que há mesmo um grande perigo em meio às chamas, mas acredito que se eu conseguir levar um pouco de água em cada voo que fizer da cachoeira até o fogo, estarei fazendo o melhor que posso para evitar que nossa floresta seja destruída…”
Em menos de um segundo o enorme animal marchou rapidamente atrás do beija-flor e, com sua vigorosa capacidade, acrescentou centenas de litros às pequenas gotinhas que ele lançava sobre as chamas. Notando o esforço dos dois, em meio ao vapor que subia entre alguns troncos carbonizados, outros animais lançaram-se para a cachoeira formando um imenso exército de combate ao fogo, vencendo o incêndio.
– Quem adivinha qual era o nome do beija-flor da nossa história?
– Colibri!
A resposta saiu em coro.
– Amo quando a senhora conta essas histórias. Vamos continuar nossa entrevista?
– Tia, quais os maiores desafios que a senhora vê que a biblioteca tem pela frente?
– Nossa cidade tem muitos atrativos turísticos, a estrada fica perigosa com o aumento do fluxo de carros durante o período de férias. Sei que vocês jovens gostam de mergulhar na cachoeira e de correr pelas ruas, mas vejo como uma atividade perigosa nesse período, principalmente quando sabemos que algumas pessoas dirigem o carro sem responsabilidade. Evitar que fiquem perambulando na estrada é uma de nossas metas. Temos ainda o desafio de aumentar o número de leitores no bairro.
Acrescentou:
– Soube que poucas pessoas têm a prática de ler e menos ainda de escrever. Luís me falou que, entre os mais idosos, o número de analfabetos ainda é grande. Buscamos reduzir esses números e, quem sabe, realizar o sonho de eliminar essa estatística. Um dos nossos maiores desafios é fazer com que a comunidade tome posse do espaço. Sei que estamos na beira da estrada e até meio escondidos, mas queremos que todos saibam que o espaço é para a comunidade e deve ser usufruída por ela.
– Mas você faz tudo sozinha? Tem alguma ajuda?
– Não… É impossível fazer um trabalho desses sozinha. Há a contribuição da Associação de Moradores, que se dispõe a divulgar, sempre aberta a nos apoiar. E ainda a nossa Rede Mar de Leitores, um grupo de bibliotecas comunitárias que se une para trabalhar em conjunto e se apoiar no trabalho. Vários representantes do grupo estão conosco hoje aqui, neste evento. Não posso me esquecer da Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias, pois com eles conseguimos levantar recursos, ou seja, dinheiro, ferramentas, equipamento, orientação… Gostaríamos de ter mais apoio do município, mas infelizmente não existe, né?
Sorri e olha para um amigo que tem cargo na Secretaria de Educação.
– Não podemos nos esquecer da Escola Municipal Ministro Sérgio Mota, que traz as crianças aqui para ouvir histórias e pegar livros emprestados, e abre as portas para nossa participação e atuação na escola.
– Agora chegou a parte que pedimos perguntas a vocês da plateia.
Aline sorri, se deleitando com algumas caras assustadas.
– Bom, pessoal, precisamos saber se o que estamos fazendo está tendo algum resultado. Então, alguém tem algo a falar sobre o que mudou em sua vida depois que passou a frequentar a biblioteca?
João, um menino de 12 anos, levanta o dedo.
– Falai aí, rapaz! Conta pra gente o que mudou na sua vida.
– Minha mãe sempre brigava comigo porque eu passava a tarde toda jogando no celular. Quando descobri que tinha uma biblioteca perto da minha casa, achei legal e passei a vir. Agora não trago mais o telefone, gosto de passar as tardes aqui, lendo, aprendendo a jogar xadrez e brincando com meus colegas. Minha mãe não briga mais comigo quando jogo, ela fala que agora jogo pouco tempo.
– Eu também tenho uma, tia…
Quase gritando, Marina, menina de oito anos, exclama.
– Pode falar, minha linda…
– Agora que a Anastasia vai lá em casa e me chama para vir aqui, não fico mais sozinha, eu gosto disso.
– É isso aí. Palmas para um dos membros mais esforçados de nossa equipe. Parabéns, Anastasia!!! Continue a trabalhar e nos ajudar a mudar a vida das crianças do nosso bairro.
Todos batem palmas e Anastasia fica vermelha como um pimentão, e quase se enfia embaixo da mesa.
– Bom, tia! Acho que já temos bastante coisa. Vamos acabar, estou louca para comer o bolo de chocolate que a tia Ângela trouxe.
Silvia dá um sorriso, acena com a cabeça para Marquinho e faz o encerramento.
– Agradeço a todos por terem feito parte de nosso pequeno programa. Gostaria de pedir que levem as informações que ouviram para quantos puderem. Sem vocês nosso espaço morreria. Peguem livros, leiam, venham fazer trabalhos, aprender as partes básicas da iniciação musical e façam parte da nossa história. Quem sabe, isso mudará a vida de vocês? Agora vamos comer os quitutes que até eu estou com fome…
Autora:
Ana Carolina Pereira da Silva, turismóloga, mediadora de leitura da Biblioteca Comunitária Colibri, rede Mar de Leitores.