DO MORRO SANTANA AO MUNDO: VISÃO PERIFÉRICA
Podia ser um dia como tantos outros: pegar a mochila, os livros e a garrafa d’água. Tudo pronto para levar a doce pitbull Belinha para um passeio pela mata nativa no Morro Santana, este, que é o morro mais alto da cidade de Porto Alegre. Chegando ao topo do morro, Sidney, que é morador da Vila das Laranjeiras, deitou-se para contemplar a natureza e olhar o céu. Foi quando aquele dia tão corriqueiro tornou-se especial. Ele se levantou, observou o seu redor e algumas palavras vieram à mente: visão, periferia, e logo, visão periférica.
E o que seria essa visão periférica? Dar a perspectiva da periferia a partir de vários ângulos e olhares. Mudar a forma como a própria comunidade se enxerga com um projeto em que as pessoas possam ser protagonistas da sua própria história, e não apenas espectadores. Cultura, educação, ecologia e espiritualidade. Um ambiente ideal para a criação de uma biblioteca viva, que acolhe, empodera, abre mentes e possibilita uma nova visão de si próprio, da comunidade em que se vive e da sociedade como um todo. Por fim, uma terra fértil para reparações sociais.
A mudança já começou no próprio lar. Vera, mãe do Sidney, não apenas cedeu a garagem da casa deles, como também foi um grande apoiadora, assim como os demais da família: irmão, irmã, padrasto, tios e tias. Assim a comunidade também foi se aproximando e chegando os primeiros colaboradores. Tudo foi tomando forma e já pensavam na inauguração.
Sidney começou a vender chaveiros e dizia “esse chaveiro era não só para afastar o mau agouro, mas também a falta de cultura”. Podia colocar as chaves no chaveiro e abrir as portas do conhecimento. Vendia bem. Nessas andanças, Sid conheceu a galera da Kuna Libertária, espaço ocupado na área urbana de Porto Alegre composto por artistas de rua, músicos e militantes. Esse encontro foi estratégico para o recebimento de uma doação de livros mais centralizada e também na participação do coletivo que deu cor à biblioteca, que até então tinha as paredes cinzas. Fizeram desenhos a mão livre e o espaço ficou colorido. Com o evento de inauguração e até matérias em jornais locais, muitos livros foram arrecadados e o ingresso na rede Beabah! aconteceu.
No dia 1 de maio de 2015, inaugura-se a Biblioteca Comunitária Visão Periférica, com um evento circense feito por artistas da ocupação Kuna Libertária pelas ruas da comunidade que é lembrado até hoje. E assim, começamos essa árdua, porém linda jornada! O enraizamento comunitário sempre foi um dos pilares da biblioteca e rapidamente a comunidade já reconhecia que ali, na Vila das Laranjeiras, havia um espaço de cultura acolhedor dedicado a eles. A autoestima dos moradores aumentou e as crianças hoje correm pelas ruas com livros embaixo do braço, pois a parada na biblioteca já faz parte da rotina delas.
Novas personagens se uniram à biblioteca: Rafaele, que é mediadora junto com o Sidney e o cãozinho Joey, o mascote da biblioteca, que acompanha as crianças nas mediações e demais atividades. É uma festa! E assim o tempo foi transcorrendo e cinco anos se passaram. Muitas mediações, ações culturais, empréstimos de livros e festas para comunidade em datas comemorativas.
Finalmente estamos em 2020. No momento de grande necessidade, a Visão tomou para si a responsabilidade de auxiliar a comunidade, pois iniciou uma pandemia que fez com que as desigualdades aumentassem avassaladoramente. Foi feita uma campanha de doação de alimentos, fizeram parte da criação do Fundo de Apoio à Fome em Porto Alegre, mas a literatura não foi esquecida e junto a essas campanhas também se distribuíram livros infantis, máscaras e kits de higiene.
Nestes tempos tão desafiadores, a visão que temos ao olhar para nossa periferia é de esperança, mas não aquela esperança passiva, mas de ação. Ser biblioteca comunitária é isso! É ser vivência social que pensa na comunidade como um todo, que defende não somente o direito ao livro, como também os direitos humanos, fazendo esta história com muitas mãos, pois é como se diz: “Sozinho somos bons, mas juntos somos ainda melhores!”