Paulo
Dentre as diversas histórias que você ouviu de ficção, essa não é não. Parece inventada, mas é real. Se um dia conseguirem me ver, não tenham medo, pois venho em paz.
Que foi? Não sou fantasma não! E nem ET.
Eu me chamo Paulo e moro na Biblioteca Comunitária Paulo Freire. Daqui a pouco conto porque esse nome. Voltando… A biblioteca é um espaço bem grande com livros didáticos e literários. Nasceu há vários anos, e nasci com ela. Isso foi em 2001. Ela fica dentro do Núcleo de Formação Irmã Anita, um dos Núcleos do Centro Comunitário São Sebastião de Vila de Cava.
O espaço se localiza em Rancho Fundo, lugar que, assim como outros bairros aqui de Nova Iguaçu, não tem acesso a todas as políticas públicas de direito e com qualidade. Mesmo assim o povo resiste e persiste com seus talentos. Conheci cantores, dançarinos, desenhistas, jogadores de futebol, lutadores de taekwondo e capoeiristas. Não posso esquecer os maravilhosos leitores e mediadores que passaram e ainda estão aqui.
Toda história tem um início, e ela começa a partir de pessoas que buscavam melhores condições para a comunidade ter acesso a equipamentos culturais e de educação. Posso citar alguns nomes, como Sandro, Maria Moreira, Sueli Catarina, Ladiceia e Irmã Anita.
O recurso para a construção da biblioteca veio de uma parceria com a Visão Mundial, no Programa de Desenvolvimento de Área Comunhão. Do programa faziam parte a Associação de Moradores de Rancho Fundo, o Centro Comunitário de Santa Rita, a Casa do Menor São Miguel Arcanjo e o Centro Comunitário São Sebastião de Vila de Cava. Antes era um galpão, mas como dizia Irmã Anita: “Todo sonho acaba por tomar a sua forma”, e esse sonho se tornou a biblioteca e me deu vida.
No dia da inauguração, a biblioteca de pé e eu sem entender muita coisa, descobri que não era alguém comum. Estava vestido com roupas verdes. Tinha 14 anos, com certeza. Como sabia? Li na etiqueta da roupa que vestia. Sentia forte energia dentro de mim. Vinha das pessoas presentes naquele momento. Acho que todas emanavam a mesma coisa. Esperança.
Quando olhei para o espaço recém-inaugurado li o nome. Descobri posteriormente que os representantes da instituição sugeriram alguns nomes, entre eles Monteiro Lobato e Paulo Freire. Eram grandes pessoas e gostavam de ler. Por fim, escolheram Paulo Freire, importante educador, com grande contribuição à educação. Esse era o nome escrito na parede da biblioteca. Eu não tinha um nome e decidi que Paulo seria muito bom. Li tempos depois a biografia dele, a primeira aquisição para o acervo. Nunca me arrependi de ter escolhido o nome e continuado aqui.
Depois da inauguração os envolvidos com o espaço fizeram uma campanha de doação de livros. A equipe de trabalho promoveu um curso de catalogação para organizar o acervo. Solange era uma delas e buscava formação para melhoria do trabalho.
Pessoas das comunidades vinham pesquisar e pegar livros literários emprestados. Teve até um projeto voltado para a área ambiental, com jogos, cinema e outras atividades. Ladiceia participou e deixou sua marca no local. Grupos escolares conheciam o espaço e estavam nas atividades. As estantes ainda enfileiradas, o que limitava a circulação do público. Com o passar do tempo e formações importantes, a equipe mudou a organização do espaço, o que permitia autonomia dos leitores para escolher os livros que levariam para casa.
Até a parte de pesquisa mudou. Hoje está top, como dizem crianças e adolescentes que passam por aqui. Por falar nelas, é o maior público atualmente. Eles ajudam a organizar os livros, planejar atividades e desenvolvê-las. Sempre ajudei o pessoal que trabalhava aqui e quem vinha. Mesmo não me vendo, sabe? Soprava umas dicas no ouvido ou empurrava o livro procurado para fora da estante. Não posso fazer isso sempre, mas dou uma força quando preciso.
Vez ou outra deixo algum livro cair sem querer e o povo fala que tem fantasma. Parece engraçado, mas não é.
Mentira, é sim! Tenho que maneirar.
Em 2010 a Biblioteca passou a fazer parte de uma Rede chamada Baixada Literária. Bem diferente do que era, novas atividades foram planejadas e as formações com o parceiro Instituto C&A contribuíram para a capacitação dos mediadores de leitura que fazem a ponte entre o livro e o leitor.
Interessante e fonte de inspiração para quem chega é que diversos mediadores que passaram por aqui foram leitores. Deixaram o melhor de si e construíram fortes relações com os frequentadores. A partir dessas referências, as atividades aconteceram e se destacaram, como as contações de histórias, Jogos Literários, Bate-papo com autor, Cine da BC e Encontro de Leitores.
Lembro-me bastante do Encontro de Leitores. Uma atividade que conseguia fazer com que os leitores se expressassem além deles, encontraram nas mediadoras apoio e amizade. Taciara, Vanessa, Adilma, Vanderson, Kathelen, Natália, Valéria, Jane, Nilvan, Oseias, Stephanny, Mateus, Marcos Vinícius, Ulisses, Vitor, Marlon, Glória e muitos outros. Ah! Que saudade! Um grupo bem bacana que tive a satisfação de conhecer. Hoje eles vêm pegar livros ou participar de outras atividades. Nunca nos deixaram.
Em uma atividade para contar a história da biblioteca, Marcus Vinícius, Marlon e Stephanny registraram em poucas palavras e fizeram até as minhas roupas se iluminarem de mais esperança.
“Aqui é um lugar de refúgio”.
“Aprendi a catalogar os livros e levei essa experiência para a escola onde estudo. Hoje sou voluntário da biblioteca”.
“Aqui é nosso lar. Este espaço tem grande importância para mim, e desejo que tenha o mesmo significado para o meu filho Ed, que também será leitor”.
Pausa para secar meus olhos molhados.
Pronto!
Não posso me esquecer do Acampe Literário, atividade coletiva da Rede Baixada. Crianças e adolescentes das bibliotecas comunitárias acampam na Paulo Freire. Há oficinas, dinâmicas, bate-papo sobre leitura como Direito Humano, Bate-papo com o autor, apresentações e o Sarau, com histórias de terror. Bu!
Sempre sou lembrada no sarau. Ou quase. Tem sempre alguém que conta a história do fantasma de Paulo Freire que vive na biblioteca. Com direito a quadro iluminado e tudo! Contam que ele deixa cair os livros das estantes de vez em quando. Sabem de nada, inocentes!
Enfim, o Acampe é muito bom, pois reúne leitores que amam livros, leitura, literatura e bibliotecas. Conheci outros como eu no evento. O Ziraldo, a Mágica, a Judith, o Olhar e a Thalita. Também nasceram como eu. Filhos da esperança.
Acompanho os mediadores e leitores nas atividades externas. Faz o maior sucesso o Ocupa Literatura. Espaços públicos são literalmente ocupados com atividades literárias, a alegria da comunidade. A equipe da Rede planeja com maior cuidado e dedicação os momentos. E participamos da Bienal do Livro, que sempre deixa marcas. Em 2017 estava lá aplaudindo os leitores da Rede que lançaram o livro Contos da Baixada Fluminense, por meio de parceria entre a Rede Baixada Literária e a Editora Ottonelli & Santiago. Viva!
Empolguei-me…
Hoje, Nova Iguaçu tem um Plano de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas aprovado e com atividades sendo desenvolvidas. Trabalho em Rede que merece congratulações.
Muito orgulho! Sério.
– Tia, sabe onde tem o livro da Baixada Literária?
Opa! Leitor chegando. Acho que contei bem a história da biblioteca e minha relação com ela. Cresci bastante desde 2010. Não em tamanho, mas em sabedoria. Pessoas passaram e ficaram, mesmo já tendo partido. Novas aqui chegam e se deixam estar. Vim da esperança e continuo porque nunca deixei de recebê-las. A esperança alimenta os sonhos e nos faz agir e não desistir. Há muitas dificuldades na comunidade, e a biblioteca tem papel fundamental. Afinal, o lugar é de todos e para todos. Aqui há um ambiente que enriquece pessoas por meio dos livros, da recepção dos mediadores e das atividades.
Espero ficar aqui por muitos e muitos anos para contar mais histórias sobre a Biblioteca Comunitária Paulo Freire.
– Sei sim. Vou te mostrar. Peraí… Aquele livro caiu sozinho?
– Deve ser o fantasma, tia. O que ajuda a cuidar da biblioteca…
Que legal me enxergar assim! Tirando a parte do fantasma…