As histórias nascem e contam vivências. Traçam uma linha no horizonte que não finda, apenas continua. Na mente, no coração, na imaginação de quem escuta e resolve semear e ser história também.
Eu sou o conto, conto literário, conto cheio de narrações e sentidos. Existo aqui para contar minha história, mudanças, desafios e conquistas. Aqui sou a Biblioteca CL Professor Leônidas Magalhães, e narrarei um pouco das minhas travessuras. Meu nome é um tanto extenso, e veio em homenagem a um professor que fazia parte de um clube, Lions Clube. O que pretendo fazer não é simples, requer tato, empatia, nada de omitir ou mentir sobre os fatos, prometo!
Bem, como personagem e narradora deste conto, conto minha existência. Nasci no ano de 2008, talvez muito antes disso, quando pessoas já me desejavam. Pessoas que, aliás, já me desejavam talvez desde a criação do Bairro Reino Encantado, parece até coisa de conto de fadas, mas o negócio é mais embaixo. A comunidade ocupou, lutou, resistiu e fez daqui seu lar.
As pessoas da região sertão do Ceará pegavam trem fugindo da seca e desciam na Estação Álvaro Weyne e ir à hospedaria Getúlio Vargas. O intuito era seguir adiante para o sul ou norte, atrás de uma vida mais digna. No entanto, muitas vezes, quando chegavam à hospedaria, encontravam apenas lotação, vagas esgotadas para estadia. Sem ter lugar para ir abrigavam-se no bairro hoje conhecido como Álvaro Weyne, na época um matagal com lagoa próxima e a Rede Ferroviária Federal, conhecida como RFFSA. Essa Rede Ferroviária descartava papelões, tábuas e outros materiais, dessa forma as pessoas que não conseguiam estadia se utilizavam desse material para fazer moradia.
De uma, duas e mais famílias nasceu uma vila. E todos os dias, durante o dia, a RFFSA derrubava os barracos. O povo, à noite, construía tudo novo. Na manhã seguinte parecia que nada tinha acontecido, e daí Reino Encantado, comunidade forte que se reinventou a cada construção noturna.
Reinventar é algo que bem sei. Já fui parede de sala de aniversário, velório e muitos encontros sociais. Ainda sou, mas não de velório. De bolo com refrigerante e notas meio desafinadas cantando “parabéns” por mais um ano de vida, a um chá com bolacha e choros lastimosos pela falta que o falecido faria. De chá com bolachas a conversas empolgantes sobre personagens amáveis dos romances, outros bem odiados (eram maldosos nos crimes policiais) e ainda os invejados pelas aventuras em Hogwarts. Na verdade, o chá com bolacha ainda existe em mim, mas ganhou significado diferente.
Vamos aos detalhes. Eu, a biblioteca que vos conto este conto, em minha singela homenagem, já estive em situações bem difíceis. Meus livros, que são seus, viviam a esmo, em uma sala pequena, abafada e sem muito contato com os humanos. Até ser encontrada, ou melhor, reencontrada. Estava lutando pela própria existência, mas fui salva. Ao ser encontrada pela Jangada Literária, revi outras que como eu tinham e continuam tendo histórias de existência e resistência. Aí foi festa! Reinventei-me, espaço novo, luz, aconchego, conforto, estantes coloridas com o brilho dos livros, um entra-e-sai de crianças e adolescentes, uma energia indescritível…
Meu espaço, que era reduzido, poupando milimetricamente cada sobra que desse para ser visitado, transformou-se em sala grande. Você que está lendo agora pode chegar aqui e dormir um sono tranquilo, na verdade não tão tranquilo. As crianças são fãs de gargalhadas descontraídas, mas isso dá uma boa melodia, que acalma e dá um sono leve. Então, esse espaço reduzido só foi superado após muita conversa com os moradores. Transformar a sala de velório em algo cheio de vida deu muito ti-ti-ti na comunidade. Mesmo as pessoas apegadas à vida, ainda resistiam em abrir mão da sala que já tinha tido lástima demais por pessoas que faleceram e que poderiam ter vivido mais.
Até que o milagre da vida aconteceu e já não havia mais caixões na sala. Apenas as histórias de assombração permaneceram. Vez em quando um garoto aposta que viu um fantasma. Histórias na verdade não faltam. Todas as quartas-feiras escuto os mais diversos enredos que ressoam na atenção da criançada que se senta em círculo para ouvir a tia da biblioteca com um livro na mão, sorriso de orelha a orelha e olhar atento. E os dias seguem, às vezes com cinema, todos os dias livros emprestados e novas experiências.
Em cada palavra, letra, pontuação que existe trago na pele a marca de uma vivência. Tive o prazer de conhecer Luiza, uma jovem que entre minhas paredes aprendeu a ler. Fazia questão de dizer que aprendera a ler na biblioteca. Experimentei o sabor de ter crianças que escolheram me frequentar no período da noite. Até altas horas da madrugada ficavam na rua causando confusão. Para uns sou a possibilidade de mudança para a nova geração, e outros, de forma simples, mas muito significativa, dou oportunidade à descoberta de palavras, mudança na forma de ler e compreender o mundo.
Não poderia faltar a história de um jovem morador do bairro que trabalhando como chaveiro. Três filhos para criar e uma mulher, companheira, que trabalha duro. Fazem um jogo de cintura para saber que conta não pagar e comprar o pão. Os dois tiram tempo para ler e economia para comprar livros. Os livros, depois de lidos, chegam aqui, doados por ambos, e fazem parte do novo lar que é de todos.
Por isso a luta pela minha existência e de outras bibliotecas é encarada com vontade, garra e ousadia. A esperança nutre os corações de quem com joelhos calejados não desiste por acreditar na força do conhecimento, do encontro pessoal e coletivo que as bibliotecas possibilitam.
O horizonte que surpreende com o multicolorido variável ainda será testemunha de diversas outras vivências. De sabores que se sentem ao ser contada mais uma descoberta que traz força e mudança. Contei meu conto, quem diria que eu, biblioteca, seria personagem, narradora, sentimentalista, dentro e fora de quatro paredes. Na verdade, contei o que vivi, ouvi e com gratidão repasso. Sou cada um que já fez, que faz e que ainda fará parte da linha traçada, que não finda. Como história nasce, é semeada e continua.