Embalado por uma música animada vou correndo na avenida para me exercitar um pouco. Não que faça o tipo atleta, mas, por questões de saúde, resolvi mudar alguns hábitos. O sol ainda está nascendo preguiçosamente, as nuvens resolveram se agitar e o céu nublado traz para o clima uma mistura de calmaria e energia positiva. A menina dos meus pensamentos me acompanha.
Enquanto corro vejo algumas pessoas, prédios, casas, comércios. Fico grato em saber que naquele bairro existe uma história de luta e resistência. Sou morador do bairro, ele existe há aproximadamente 50 anos, hoje conhecido como Presidente Kennedy. Quando adolescente, ouvi uma senhora contar a história do lugar. As pessoas se uniram para conseguir direito à moradia, disse dona Márcia, uma boa contadora de histórias. Nela, enquanto falava, sentíamos nas palavras o gosto de bravura e conquista. Dona Alda, proprietária do terreno, na época ocioso, vinha com advogados para expulsar as pessoas, derrubando as casas que então não eram de alvenaria.
Havia muita angústia. Toda vez que chegavam, sabiam que a casa seria invadida. Mas a comunidade ficou conhecida como local de resistência. Houve até quem comprasse um pedaço do terreno. Os que não tinham como comprar conquistaram, na base do diálogo e do manifesto, um espaço para sua casa. Dona Márcia disse com entusiasmo que, desde criança, movimentava a comunidade no processo de ocupação. Reunia-se com outras crianças para jogar pedras no carro de dona Alda para ela não entrar no bairro.
Finalmente, minha caminhada da manhã chegou ao fim. Paro ofegante. Lembro-me da menina dos meus pensamentos. Bebo um pouco de água e vou em direção à padaria mais próxima, para comprar pão e massa de cuscuz. Ao entrar, meu olfato fica aguçado com tantos cheiros que emanam das variadas opções de comida. Vejo, do outro lado da rua, uma fila enorme no posto de saúde. O atendimento é precário e, com frequência, faltam médicos.
Escuto duas mulheres com criança no colo falando sobre a necessidade de uma creche no bairro. As indignações se transformam em unidade e luta coletiva.
Olho para o meu relógio e vejo que já são oito horas, o sol começou a dar indícios da sua temperatura tropical. Uma jovem passa por mim e noto um livro em sua mão… Já sei aonde vai. A comunidade hoje está envolvida com a leitura, graças à existência da Biblioteca Sorriso da Criança e das atividades que organiza. Os eventos literários são promovidos pela instituição que igualmente se chama Sorriso da Criança, sede da biblioteca.
Há sete anos a instituição organiza saraus na comunidade, geralmente promovidos pelos jovens. Sei disso, pois participo e já ouvi muitas histórias, inclusive da fundação da biblioteca. Sou até suspeito em dizer, mas a biblioteca é a melhor parte da instituição.
Passo em frente do prédio onde ficam a instituição e a biblioteca. Olho para a placa que identifica o lugar: “Biblioteca Comunitária Sorriso da Criança”. Engraçado! Sempre achei que ter uma biblioteca aqui seria perda de tempo, num beco tão estreito. Mas a biblioteca faz a diferença e tem história!
As mediadoras de leitura que trabalham nela me contaram que a fundação deu-se em maio de 2005. No início foram compradas coleções da Barsa e livros infantis. O espaço foi idealizado pelo ex-gestor, chamado Paulo, para as famílias atendidas terem acesso ao livro e, principalmente, para haver um lugar de pesquisa escolar.
Elas disseram ainda que antes da fundação da biblioteca já havia uma sala de leitura, pensada e organizada por uma ex-gestora da instituição, Maria da Penha. Não houve inauguração oficial, pois a partir do reforço escolar no projeto as pessoas ficaram sabendo da biblioteca. Naquele período, se localizava na atual sala de dança. Houve mudança de espaço em 2008, para uma sala maior.
Nesse mesmo ano foi feita uma parceria com o Instituto Nordeste Cidadania, mobilizando um mutirão para pintar as estantes, cadeiras e piso. A biblioteca recebeu, a partir da parceria, a doação de computadores, disponíveis para pesquisas. Por conta disso, há um projeto de diário de leitura que relaciona a leitura ao uso do computador. A partir desse projeto, ganharam o prêmio do Ponto de Leitura do município, em 2010, e os prêmios de Pontinho de Cultura do Estado e da cidade.
Outra história interessante é que ela faz parte de uma rede local chamada “Jangada Literária”. A entrada na rede deu-se a partir de um convite feito por outro financiador da instituição, que estava sabendo do edital lançado pelo Programa Prazer em Ler, do Instituto C&A. Em seguida, organizações próximas territorialmente e uma da região metropolitana de Fortaleza enviaram os projetos, que foram aprovados. Nossa! Quanta história, hein?!
Continuei andando até minha casa, ansioso por um banho e, claro, pelo meu café da manhã com um bom pãozinho e cuscuz para dar sustância. Agora de manhã tenho que ajudar meu avô, ele está vendendo umas coisas de artesanato e me pediu para ajudá-lo. Sei que no final vai me dar uns puxões de orelha, por achar que fiz tudo errado. Mas estou louco para essa manhã acabar logo e chegar a tarde, pois tenho encontro marcado no lugar mais cheio de histórias da cidade – a biblioteca.
E hoje terá Clube de Leitura! Uma das variadas atividades que a biblioteca oferece: semanalmente tem mediação de leitura; e há ainda o “Tecendo Memórias”, ação voltada às histórias/memórias das pessoas do bairro; contação de histórias que os próprios moradores contam.
Gosto muito de tudo o que acontece, principalmente porque lá encontro a menina que ronda meus pensamentos.
Ela é uma das frequentadoras da biblioteca. Mas vejo que o público mais participativo das atividades, em sua maioria, são as crianças. Os jovens lideram a lista dos empréstimos de livros, mas isso está mudando e vai melhorar. O que me deixa encantado é a qualidade dos livros. São de qualidade porque aprendi com as mediadoras de leitura. Há uma grande diversidade de gêneros literários para diferentes públicos. O acervo foi comprado a partir de sugestões dos leitores, para tornar o processo mais democrático. Para mim isso a torna diferente em relação a outras bibliotecas.
Ufa! O tempo passou rápido e já são 14h. Começo a andar apressadamente, quero aproveitar muito aquele lugar. O sol está dando seu máximo e sinto o suor correr na minha testa, passo a mão e tiro o excesso. Quando entro, lá está ela, a menina dos meus pensamentos conversando com outros jovens. Eles participam do comitê da Rede de Juventude em Defesa de seus Direitos Sociais (Rejudes). As reuniões acontecem na biblioteca, já vi algumas vezes.
O clube de leitura começa! Sentamos em círculo e um livro é mediado. A menina dos meus pensamentos está radiante. Olho para ela e lembro que, certa vez, estava aqui na biblioteca com ela, quando o espaço era lá no piso de cima (hoje, para promover a acessibilidade, trouxeram para o piso de baixo e o espaço está um pouco menor do que antes, mas quando se fala em acesso para todos, vale a pena umas mudanças), perto das estantes. Eram dupla face, ficava próximo à janela, e aproveitamos o espaço, a ausência e distração das educadoras e fomos namorar.
No entanto, a vizinha que mora em frente à instituição nos viu pela janela. Ligou para a gestora e disse que estávamos entre amassos. A gestora chegou e nos deu um grande susto.
Minha distração acabou quando escuto outras vozes que falam sobre a importância e os impactos sociais da biblioteca. Paula, uma colega, ressaltou que a biblioteca foi essencial em sua vida por ter contribuído para o seu desenvolvimento pessoal. Amenizou a timidez, o medo de falar em público, e hoje consegue lidar melhor com isso. Vitória, moça muito inteligente, afirmou que a biblioteca abriu as portas para conhecer mais livros e o universo literário. O que vem repercutindo em sua trajetória, pois é um lugar de encontro com os amigos.
Movido pelos depoimentos, levantei a mão: “Vejo que a biblioteca é importante para a comunidade, pois é o único equipamento cultural próximo que proporciona não somente o empréstimo de livros, mas um local de encontro. Aqui nós podemos propor peças teatrais que tratem de algum assunto atual ou a partir dos livros mediados e dos livros que são emprestados. É o melhor lugar da instituição, aconchegante e acolhedor”.
Uma educadora, que fala ligeiro, comentou como vê a biblioteca: “O impacto transparece na comunidade a partir do momento em que os jovens estão frequentando e atuando. Entendem que fazem parte e têm um papel dentro do espaço. Mas isso não se deu à toa. Somente com a entrada para a Rede Jangada Literária se tornou possível qualificar e ampliar o acervo, garantir uma pessoa ativamente, em diversas atividades, do empréstimo de livros à mediação de leitura e à articulação com os movimentos, pela garantia da leitura como direito humano”.
A gestora da instituição, que tinha acabado de entrar, se expressou logo em seguida: “Por causa da Rede local ficou mais visível, contribuiu e ainda contribui para a cidade. As pessoas acabam sabendo da existência. O Prazer em Ler ajuda o entendimento da leitura como direito humano. Aqui, as pessoas são sujeitas de sua história. Por isso, não pode ficar sem apoio social e financeiro do poder público. Ela tem papel fundamental como as públicas, escolares, universitárias e outras. Precisamos nos unir para lutar pela aprovação do Plano Municipal do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas, e garantir orçamento para nossa e outras bibliotecas comunitárias”.
Chega a hora do lanche e fico paquerando a menina, que devora, cheia de entusiasmo, o pão com patê de alho. Aliás, é uma gostosura. Olhamo-nos e soltamos sinais de que depois dali poderíamos paquerar mais um pouco. Quando retornamos, está o maior barulho na sala, pois dar comida para jovens é mais do que revigorar suas forças. As três educadoras começam a pedir silêncio, até que começa a rondar. Uma música toca, cantamos juntos, e aí voltamos ao bate-papo. Uma poesia é lida, feita pela educadora – aquela que fala rápido.
Depois recebemos um panfleto sobre as atividades, em parceria com escolas da comunidade e até dos demais bairros, levando livros e a mediação de leitura para os alunos da creche e do Ensino Fundamental 1.
Era como se a comunidade hoje fosse mais aberta às atividades itinerantes literárias. Há mais participação, e os quintais são lugares de suporte para as ações, facilitando a aproximação com os moradores. Em uma parte do panfleto, havia fotos de uma galera animada e um pequeno texto sobre estar ativamente envolvida em ações planejadas pela Rede local. E completava lembrando que alguns membros estão nos grupos de trabalho da Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias.
Despedimo-nos com abraços e um “até logo”. Pego nas mãos de minha amada menina, entre olhares e um suspiro de “até breve”. Saio com um sorriso no rosto, entusiasmo na alma e paixão no coração. Lutar, resistir e ser poeta. Poeta das minhas histórias, das minhas lembranças, das minhas vivências.
Já é noite. Bênça vó, bênça vô. E assim durmo um sono tranquilo, embalado pela história que ouvi sobre o menino que florescia…
Autora:
Emiliana Nunes, estudante de Serviço Social, mediadora de leitura há seis anos na Biblioteca Comunitária Literateca, da Jangada Literária, escritora e administradora do blog Azul Clichê.