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Coluna Dois cafés e a conta com Carlos Honorato (Biblioteca Comunitária Wagner Vinício)

Carlos Honorato tinha 9 anos quando as chuvas invadiram sua casa, no Anil, em Jacarepaguá. Sua família perdeu tudo na enchente que atingiu o bairro em 1996. Ele e os pais foram reassentados num conjunto habitacional feito pela prefeitura na favela Rio das Pedras. No novo local, ele logo descobriu o projeto Plantando o Futuro, iniciativa do Instituto C&A que oferecia atividades de esporte, música, arte e arte educação. Passava a tarde lá. No projeto, havia ainda um espaço com livros, onde Carlos encantou-se com obras como “O pequeno príncipe”. Aos poucos, esse espaço cresceu e, em 2006, o Plantando o Futuro resolveu focar todas as ações na democratização da leitura.
Surgia a Biblioteca Comunitária Wagner Vinicio. O nome homenageia um jovem morador, que doou os primeiros livros ao espaço e que morreu num acidente de trânsito. Desde 2008, Carlos é mediador de leitura e coordenador pedagógico da biblioteca. Virou referência em meio a tantos modelos negativos. “Temos cerca de cinco mil livros catalogados no sistema, e 1.500 para catalogar. São mais de 740 leitores cadastrados e uma média mensal de 234 empréstimos de livro. Numa comunidade em que faltam equipamentos culturais, a biblioteca promove o acesso à leitura e à cidadania”, diz ele, de 29 anos, formado em Pedagogia e prestes a terminar a pós em literatura infantojuvenil.
Ali, são oferecidas atividades como roda de leitura, sarau poético, jogos, leitura livre e compartilhada, em que cada criança escolhe um livro e diz por que ler a obra, e biblioteca itinerante, que circula pela comunidade. A Wagner Vinicio é parte da Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (RNBC). São mais de cem no país, que recebem suporte financeiro e assessoria do programa Prazer em Ler, criado pelo Instituto C&A em 2006.

Como você se interessou pela leitura?

Em casa eu tinha pouco estímulo. Minha mãe, que trabalhou como doméstica e hoje é auxiliar numa creche, tem ensino médio completo, mas só lê a “Bíblia”. Meu pai, pedreiro, é analfabeto. Foi na biblioteca comunitária que o bichinho da leitura me mordeu. Mais tarde, virei monitor de lá. E, depois, mediador, profissional que faz a ponte entre o leitor em potencial e o livro. Seu papel é intermediar os questionamentos que vêm pela leitura. Não fornece respostas. Desperta o interesse e dá caminhos para a pessoa pensar sobre o tema. Conseguimos enraizar a biblioteca na comunidade e fazer com que os moradores se sintam pertencentes a ela. Um dia esqueci a luz acesa e bateram na minha casa, achando que alguém tinha invadido a biblioteca.

Como é a frequência?

No período de aulas, a média diária é de 35 crianças. Nas férias, de 50. E de 20 a 25 jovens e adultos pegam livros emprestados por semana. Há crianças e jovens que estariam ociosos o dia todo, mas que ficam aqui das 9h às 18h, cobram se está fechado, vão lá em casa perguntar se já vou abrir. No fim de 2017, demos medalhas literárias aos irmãos Thiago Lukas, de 8 anos, e Thallys Victor, de 7. Cada um leu 86 livros no ano. E suas irmãs, Nicole Franciely, de 15, e Thiffanny Sthefany, de 11, também são frequentadoras. A mãe é doméstica, cria os filhos sozinha e trabalha o dia todo. Thiffanny é leitora voraz, começou com gibis e está lendo “A bolsa amarela”, da Lygia Bojunga. Há uma família vizinha daqui, com outra mãe solteira e seus quatro filhos. Eles vão à biblioteca todos os dias. No início, não sabiam se comportar e manusear os livros, que voltavam de casa danificados. Hoje, eles participam das atividades e são leitores ativos. Há uma menina, Mirele, de 10 anos, que levou um livro emprestado pela primeira vez. Expliquei que tinha que cuidar porque outros iriam ler depois. Ela disse: “É, a gente cuida do livro como se fosse um diamante.”

Que outra importância tem a biblioteca?

Ela é um suporte. As gêmeas Tamires e Talita tiveram complicações após o nascimento. As duas e os sete irmãos cresceram participando de nossas atividades. Tamires teve muitas dificuldades na vida familiar e escolar, mas aqui tinha respaldo dos mediadores, encontrava livros para os trabalhos escolares e recebia estímulo para continuar estudando. Hoje estuda à noite no ensino médio. A biblioteca é ainda espaço de acolhimento e afeto. Uma jovem apareceu na hora em que eu estava fechando e pediu para ficar um pouco. Os pais estavam brigando e ela queria se refugiar ali. Outra adolescente que passava por problemas familiares hoje lê para a mãe, e a relação flui melhor.

Como fazer a ponte com a realidade deles?

A biblioteca comunitária dialoga com os moradores e escuta suas demandas. É um espaço de resistência, transformação, reflexão. Em novembro, focamos na literatura africana e afro-brasileira. As crianças pesquisaram sobre suas famílias. Lemos contos africanos que falavam da origem dos orixás, sob um olhar cultural, para elas verem que não existe religião ruim. Quando falamos de Monteiro Lobato, trabalhamos geografia, mitologia, história. Elas questionaram o tratamento dado a Tia Anastácia, e aproveitamos para abordar a questão racial. Os jovens pediram que falássemos de sexualidade. Eles leram e comentaram contos e poesias eróticas, compararam com os funks que escutam, viram como a arte pode tratar do tema sem ser de forma explícita e vulgar.

Dê mais exemplos de temas abordados.

A gente estimula o protagonismo. Queremos que as crianças tenham voz. A partir da leitura de “Nascemos livres”, adaptação de Bartolomeu Campos de Queirós da Declaração Universal dos Direitos Humanos, elas pesquisaram que direitos a comunidade tinha e quais faltavam. Após ler “Raul da Ferrugem Azul”, de Ana Maria Machado, sobre um menino que vai enferrujando cada vez que não consegue expressar o que sente, elas fizeram questionamentos sobre situações desagradáveis que vivem, desde a forma como os pais falam com elas até apelidos. Já “O homem que amava caixas”, de Stephen Michael King, fez com que falassem da relação com o pai. Não podemos garantir que essas crianças serão leitoras vorazes, mas asseguramos que terão acesso à leitura.

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