Regressei este ano ao Folio, o Festival Internacional de Literatura de Óbidos, não mais no papel de curador dos debates, mas como escritor, para participar numa conversa com Milton Hatoum, moderada por Ondjaki. O tema desta terceira edição do Folio era “Revoluções, revoltas e rebeldias.”
No verão perpétuo que se instalou em Portugal, a pequena vila de Óbidos parecia Paraty, mas com mais brasileiros, mais calor e menos chuva. Isto às portas de novembro, quando era suposto fazer frio e chover tristemente a todas as horas do dia. O que mais me assusta nesse imenso desastre a que chamamos aquecimento global é, por vezes, a sua simpatia. Fica difícil lutar contra um apocalipse que adoça o inverno. Em todo o caso, este inverno português.
O público que assistiu ao debate parecia ser composto apenas por brasileiros. Algumas vezes cheguei a esquecer-me que estava em Portugal. A maior parte das perguntas foram sobre a situação política no Brasil: como sair da crise?
Questão difícil. Sou angolano. Durante décadas, sempre que algum amigo brasileiro se queixava do Brasil eu dava-lhe a ver Angola. Agora, pela primeira vez, tenho mais esperança em Angola do que no Brasil. Em Angola existe pelo menos uma possibilidade de mudança — com ou sem revolução. Há políticos na oposição democrática que me parecem sérios e confiáveis, ainda que não partilhe as ideias deles. Já no que diz respeito ao Brasil, vejo os políticos se comportando de forma muito semelhante, roubando descaradamente, se protegendo uns aos outros e troçando de quem não rouba. Substituir os políticos no poder pelos que estão hoje na oposição e esperar que alguma coisa mude, é como pintar uma pedra de amarelo e ter fé que, espremendo bem, dê limonada.
Milton Hatoum defendeu uma solução a longo prazo: apostar na educação. Concordo com Milton, naturalmente, mas não sei como será possível melhorar o sistema público de educação sem, antes disso, substituir toda a classe política atual por outra que acredite na importância de tal aposta. Desde logo, por uma outra que tenha sido bem educada.
Saí da sessão em Óbidos pensando nesta questão. Ainda não tenho uma boa resposta. Talvez, contudo, uma parte dessa resposta esteja no tema da última edição do Folio: “Revoluções, revoltas e rebeldias.” Curiosamente, um tema semelhante ao da Festa Literária das Periferias, Flup, que terá lugar entre os dias 10 e 15 deste mês, no Vidigal.
Festivais literários como o que acontecem em Óbidos ou no Vidigal, bem como as centenas de eventos semelhantes que pipocam um pouco por todo o Brasil, ajudam a formar leitores. São parte de uma verdadeira revolução do pensamento, elegante e silenciosa, através do livro e da educação. O mesmo se pode dizer das centenas de bibliotecas comunitárias que nos últimos anos se criaram no Brasil. Numa recente digressão pelo país, para apresentar um novo romance, conheci duas destas bibliotecas, uma em São Paulo, outra em Olinda. Conversando com os responsáveis pelas mesmas ouvi falar, pela primeira vez, na Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias.
Comovi-me, numa dessas bibliotecas, escutando os testemunhos de leitores. Numa próxima visita a São Paulo gostaria muito de visitar a Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura, que funciona dentro do Cemitério da Colônia, no extremo sul da cidade. O Brasil no qual eu acredito, aquele que nos devolve a esperança, é este: o que consegue transformar um cemitério num lugar de leitura e de aprendizagem. Sinto uma admiração sem limites pelas pessoas simples que criam e dinamizam bibliotecas.
Este ano, num debate em Oslo, na Noruega, alguém me perguntou o que penso sobre os programas de apoio ao desenvolvimento dos países escandinavos. Suécia, Noruega e Dinamarca passaram décadas apoiando projetos de desenvolvimento em países do Sul, especialmente africanos. Respondi que se o dinheiro fosse meu iria investi-lo em primeiro lugar na criação de redes de bibliotecas públicas. Caso não houvesse interesse por parte das entidades governamentais dos países receptores, procuraria organizações independentes.
Bibliotecas nunca desiludem. Um bom leitor é um eleitor mais informado e responsável; formando leitores estamos também desenvolvendo a empatia e o interesse pelo outro. A longo prazo esse esforço irá traduzir-se numa sociedade mais exigente, mais interventiva e, por extensão, numa classe política um pouco menos bruta do que a atual.
Mas será sempre uma revolução lenta — se me permitem o oxímoro. Aliás, um belo oxímor.