História da Biblioteca Djeanne Firmino
É na ciranda com as mulheres que a roda gira
Venham, venham todos cirandar na roda que gira na roda da vida!
Era uma vez… Não, não. Nada de era uma vez.
Há muitos e muitos anos havia… Não, não ficou legal.
Pensando melhor…
Um sarau acontecendo dentro de um bar, na Zona Sul da cidade de São Paulo. Encontro de gente apaixonada por livros e histórias: sonhadores, poetas, artistas, militantes, curiosos… Os olhos flamejantes, corpo em movimento como se dançassem ao som e ao ritmo da poesia recitada. Alguns mais ousados erguem os braços e esbravejam palavras de resistência, de luta, com vozes intensas, olhares vidrados, como se chamassem para junto de si… E de mãos dadas, seguir na caminhada. Outros um pouco mais tímidos, com suavidade na voz, corpo mais rígido, olhar fixo no livro ou na plateia, não tiram os olhos do que acontece ali, na frente do microfone que dá voz a todos. E bem ali no bar, em meio a risos, deliciosos quitutes, barulho que se silencia ao som da poesia.
Gente de todo lado da cidade vai chegando e querendo entender o que era aquilo. O Sarau do Binho; encontros acontecem e vidas são transformadas. Binho poeta, sonhador, sonhou que os livros e as histórias chegassem a mais pessoas, e deste sonho nasceu a Brechoteca, sim, Brechó com biblioteca, e um dia, duas garotas apareceram por lá, conheceram a Brechoteca e se encantaram com o lugar. E contagiadas, guardaram no peito um desejo imenso de colocar no mundo movimento em seus sonhos.
Então, uma delas corre para casa e, como uma grande escritora, de repente vêm um insight e uma vontade louca de transcrever no papel algo que está ali, saltando no peito. Incansavelmente escreve e envia a proposta que mudaria vidas, que as colocaria em outro lugar no mundo, um lugar que elas não sabiam muito o que era, mas aonde queriam estar.
Negócio fechado. Dali do bar, de poesia, de arte, um pulinho para o brechó era fácil. Mas não qualquer brechó, mas sim um espaço com livros, um espaço de biblioteca, de leitura, de emprestar livros. Incomum, não é mesmo? Um brechó que é biblioteca? Para essa turma nada de estranho, pois até sortear geladeira em eventos da biblioteca era algo que fazia parte. E por que não uma Brechoteca? Nome curioso, confundindo quem chegava, achando que tinha que comprar os livros e estranhava o empréstimo, mas ao mesmo tempo um nome que pegou: sonoro, gostoso de falar. Para os íntimos, Brechó.
Uma biblioteca dentro de um brechó e uma turma de “malucos” que se juntava para fazer e falar poesia. Pode? Não apenas pode, como outros foram se juntando para espalhar poesia por onde passavam. E no encantamento foram se achegando e entendendo que ali era o lugar, que ali havia possibilidade de sonhar juntos e partilhar as histórias, as palavras. Na aventura de ações em uma biblioteca comunitária, em um território com crianças, jovens, adultos…
Tudo acontecia no bairro de estrutura escassa, pouca mobilidade, casas coladas umas nas outras, sem conseguir entender onde uma acabava e a outra começava. A violência já era parte do cotidiano. Mas ainda assim um grupo resistia e ocupava, com poesias, com histórias. Nas muitas andanças, das muitas histórias, até um Zorro brasileiro se juntou, e a comunidade aos poucos se modificou.
Mas as dificuldades foram aparecendo, e mudanças eram urgentes. O território é importante, a população precisa e quis o espaço, mas devia-se abrir mão de algumas coisas. A coletiva então pensou em separar a biblioteca do brechó. Vamos de mutirão, e aos poucos o espaço que até então se dividia entre livros e roupas, calçados, acessórios, transforma-se em uma aconchegante e acolhedora biblioteca arejada, repleta de livros, com almofadas, tapetes e sofá.
A comunidade se transformou, começaram a perceber que o entorno precisava ficar belo, acolhedor como a biblioteca. Mãos à obra mais uma vez… e a beleza se fez.
Entre as conquistas surgiram desafios: encontrar um espaço que não pagasse aluguel. E nas andanças, vários lugares foram vistos, analisados, mas as relações não muito agradáveis de machismo, violência verbal, falta de estrutura e falta de cuidado preocuparam cada vez mais a coletiva.
Mas a ciranda da vida continuou girando e novos espaços surgiram. A periferia e sua pluralidade apresentaram outras possibilidades – de acolhida, aconchego, parceria, abraços afetuosos, risos, cultura, aproximação, olho no olho.
Marcada por perdas e dor, as mulheres dessa biblioteca não se abateram e continuaram a jornada. Mas um momento de grande decisão tomou conta da coletiva: mudar um espaço de nome influenciaria a história do lugar? Perderia sua identidade? As perguntas e muitas outras começaram a fazer parte do dia a dia da coletiva. Batalhando para manter a biblioteca aberta, criando e reinventando com a comunidade, enfrentando outros desafios, decidiu-se homenagear aquela que os inspira ainda hoje.
Pelo seu jeito de lidar com os problemas diversos da vida da comunidade, da beleza que sempre levou em suas palavras e em sua prática, em toda a sua sabedoria, sua presença intensa na biblioteca. Manter sua vida no lugar era essencial.
A biblioteca estava para se transformar, dar beleza, uma forma de ver o mundo, espaço de diálogo com a comunidade. Mostrava que era possível sonhar um mundo mais bonito de se viver. Semeava sonhos, ajudava a entender como era ser e estar no mundo, reinventava a vida, ajudava a entender a identidade periférica.
“A biblioteca e os livros me ensinaram a me reconhecer e enfrentar o racismo… Quero morar na biblioteca”.
Biblioteca Djeanne Firmino na ciranda da vida!
Autora:
Val Rocha, artista, mediadora de leitura, arte-educadora no Instituto Brasileiro de estudos e Apoio Comunitário e na Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura e na Rede de Leitura LiteraSampa, sistematizadora na Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias.