Biblioteca Comunitária

Caboclo Girassol

Integrante de

Os erês Entre Palavras Cantadas e Escritas

O sossego tomava conta do bairro de Águas Compridas após o meio-dia, como é sempre de rotina na hora do almoço, mas um farfalhar corta o silêncio, a rabada se ergue no alto e o cerol talha o vento fazendo o voo da pipa uma verdadeira dança.

 

– Olha lá a pipa tricolor! – admiravam-se os senhores que rondavam as bancas de bicho.

 

Fael, com as costas nuas, brilhando no sol, apurava a vista para não perder sua pipa no vasto azul do céu. Entre as nuvens brancas, surge na outra rua uma baita cruzeta, porte poderoso, daquelas pipas que impõem respeito. Nem deu tempo da pequena pipa tricolor se recolher, o cruzetão chegou chegando e com seu afiadíssimo cerol cortou a linha esguia de fael.

 

Os olhos tristes acompanharam o bêbado voo do papagaio torado. Foi descrevendo giros irregulares até cair no terreiro da Tenda Caboclo Flecheiro, na rua Águas Claras.

 

O moleque mete a cara e pula o muro do lugar, sem ter medo de cachorro ou de alguma velha furiosa com cabo de vassoura na mão, corre para o fundo do terreiro e em mais nada presta atenção.

 

Agarra a pipa, quase se emociona de felicidade. Mais calmo, começa a observar que sua coragem o levou a desconsiderar que aquela casa tem dono. Escuta-se um forte latido furioso, típico de um cão de guarda preparado para atacar quem invade o seu território sagrado. A agonia toma as canelas de Fael que, nervoso, tenta sem sucesso pular o muro de volta à rua. Cansado e sem forças para correr ele decide se entregar ao seu triste destino: De frente com uma fera indomável.

 

O cão se aproxima rosnando, mira uma doída mordida, mas chega perto do garoto e começa a cheira-lo e lambê-lo. Mais aliviado do susto, Fael cai na gargalhada e começa a brincar com o cãozinho vira-lata caramelo, que mais tarde saberia que se chama Salsicha. Enquanto brincavam, foram surpreendidos pela chuva que trouxe um céu fechado de nuvens carregadas. Ao longe é possível ouvir o corre corre das donas de casa recolhendo as roupas do varal e o vozerio da vizinhança comemorando a chuva que há muito tempo não dava as caras, mas também pedindo que não vinhesse muito forte para que nenhuma barreira deslizar nos altos.

 

Buscando se abrigar da forte chuva, Fael se depara com uma sala repleta de livros e muitas histórias fotografadas expostas nas paredes.

 

– Que lugar fantástico!

 

Salsicha corre abanando o rabo e parece ir avisar alguém da visita. Quando retorna, traz com ele o menino Aquiles, que embora tenha nome de guerreiro, carrega no semblante a paz e tranquilidade que contagia Fael.

 

– Quantos livros! – Afirma Fael estupefato.

– Esta é a Biblioteca Comunitária Caboclo Girassol. – Diz Aquiles, contemplando o olhar encantado do visitante.

– Eu posso ficar aqui e pegar um livro?

– Claro que pode! A biblioteca comunitária é um espaço de leitura para todas as pessoas do bairro, inclusive você. Como é seu nome ?

– Me chamo Fael. E o seu ?

– Me chamo Aquiles… o que foi isso no seu joelho ?

– Ah! caramba! Me arranhei feio na hora que pulei o muro, inclusive me desculpa.

– Não se preocupe com isso, precisamos dar um jeito neste corte. Espera um pouco!

 

Aquiles foi até o Jardim Sagrado do Terreiro, local onde sua mãe, Nayde, costuma trabalhar, e a informou da presença de Fael  e o seu ferimento. Nayde consultou os ancestrais e seguiu para a biblioteca, que ficava duas salas ao lado, com uma garrafa pet pequena repleta de um misterioso preparo, derramou um pouco num pedaço de algodão e o aplicou no corte do joelho de Fael. Depois, jogou um punhado de pipocas em cima do ferimento. Assim que sentiu o cheiro da infusão de ervas na pele negra machucada, salsicha se aproximou e começou a lamber a ferida, mas antes que pudesse se assustar, Fael observou que, como por encanto, o corte começou a se curar.

 

– Olá ,Fael! Me chamo Nayde, sou Ekedi da casa e mãe de Aquiles. Aqui no terreiro a gente tem o Jardim Sagrado onde trabalhamos com as ervas medicinais a partir da espiritualidade, oralidade e escrita das nossas ancestralidades e também com muita pesquisa científica. Já já a ferida vai ficar boa por completo. Omulu cura todas as feridas. Com o seu Xaxará, o seu instrumento de cura que é uma mágica vassoura de nervuras da folha de dendenzeiro, Obaluaê cura todas as pessoas. Ele sabe os segredos das doenças. Aqui nesse terreiro a gente canta e louva o curandeiro. Obaluaê. Atotô! Disse Nayde com a voz imponente.

 

– Nossa, Nayde, você é tão jovem, mas parece ter vivido muitas vidas! Como isso é possível ?, perguntou Fael admirado.

– Aprendo muitas coisas com as palavras cantadas, faladas e escritas aqui na Biblioteca. Pai Edson de Omulu uma vez me disse que: “O Girassol é a flor que gira à procura do sol. Aqui a gente tá sempre procurando aprender com as nossas próprias histórias, pois a educação ilumina os nossos caminhos.”

– Nossaaa! Quero aprender muitas coisas também aqui e, quem sabe, quando crescer, ser tão “sabido” e inteligente quanto você.

 

– Tá ouvindo esse som? É o toque do berimbau. Vai começar a roda de capoeira. Vamos lá no salão?, disse Aquiles empolgado.

– Aqui tem Capoeira? Vamos sim!

– Já jogou Capoeira? perguntou Nayde.

– Não. Só vi na televisão. Mas sempre quis fazer.

– Ah! Então hoje você vai jogar, eu também sou mediadora da oficina “Histórias e culturas da Capoeira Angola em Gira de Resistência”, mas antes, como de costume, sempre no início a gente faz uma mediação de leitura e vou ler para vocês o livro  “Zum Zum Zumbiiiiii, História de Zumbi dos Palmares para crianças”, da autora Sonia Rosa e ilustrações de Simone Matias. Chegou muitos livros infantis para o nosso acervo por conta da Releitura, coletivo de bibliotecas que a gente faz parte.

 

– Obaaa!!! Vi que na biblioteca tem muitos livros bons. Esse lugar é muito bacana. Tem muita coisa que eu gosto. Disse Fael cada vez mais encantado com o lugar.

– O Terreiro foi fundado em 2014 e já nasceu conectado com a capoeira e a biblioteca. A biblioteca, a capoeira e o terreiro estão interligados pela linguagem oral e por isso a gente sempre conta uma história antes de começar a jogar,  disse Nayde.

 

Chegando ao salão encontraram com os erês Sambalonga, Pé de Pavão, Beké, Cavunje, Deundá, Mbámbi, Rosinha, Joãozinho, Estrelinha, Bom Nome, Dourado, Ás de Ouro e Cardeal. As palmas das mãos começaram a aquecer a roda que deixou de ter um ritmo cadenciado e passou a acelerar com os movimentos. Meia luas, bênçãos, negativas e rolês marcavam o chão do salão, mas de repente… uma cabeçada desavisada no peito de Fael o fez  cair de bunda no chão. Era possível sentir sua raiva em seus olhos. Ele sai da roda revoltado com Dourado, querendo o revide.

No momento, o tempo pareceu parar e foi possível Fael enxergar uma mulher negra atravessando a porta do salão encantando o lugar de tranquilidade e leveza. Pela janela dava para ver o vento balançando as folhas das plantas do jardim sagrado.

 

– É a mulher do quadro pintado na parede da biblioteca! Disse Fael com tom de surpresa.

– É sim. É tia Ana Paula… Disse Aquiles.

 

Um abraço de Ana Paula o fez esquecer a dor e a ira que sentia por Dourado.  Ana Paula escutou as aflições de Fael de forma afetuosa e trouxe algumas palavras de sabedoria que acalmou a mente e o coração do menino. Como fazia quando ainda estava nesse plano espiritual e atuava como psicóloga da Tenda Caboclo Flecheiro. Mesmo em outra dimensão, Ana Paula, entre nuvens representadas no quadro da biblioteca, com toda a sua relação direta com Oxalá, de pacificação, continua presente trazendo tranquilidade para o ambiente e ajudando todo mundo em sua individualidade. Suas lições trazidas naquele encontro tornaram Fael um homem respeitoso e respeitado. Logo depois, de forma encantada, Ana Paula desapareceu entre as nuvens que surgiram pela janela do Jardim Sagrado.

 

– Para onde ela foi? perguntou Fael admirado.

– Foi para as nuvens. Em cada nuvem que passa no céu, ela está. Disse Nayde.

O jogo seguiu na roda e a alegria tomou conta de todo o salão. Nayde terminou a atividade satisfeita com a sensação de dever cumprido e ficou feliz com o rumo que o pequeno incidente tomou. Quando deu “Salve capoeira!”ouviu-se o barulho do portão se abrindo e quem surgiu com um belo sorriso no rosto foi Pai Edson de Omulu, Babalorixá da casa e gestor da biblioteca Caboclo Girassol. Pai Edson trazia em uma das mãos uma sacola repleta de caixas de chocolate.

A meninada fez fila para ganhar os cobiçados doces das mãos do Babalorixá. Eram pulos de alegria!

Os pequenos rostos eram velhos conhecidos de Pai Edson, mas um, em especial, lhe chamou atenção.

– Olha, hoje nós temos um novato?

– Sim. Me chamo Fael.

– É um prazer recebê-lo em nosso espaço, Fael! Eu sou o Pai Edson de Omulu.

– Ouvi falar sobre o senhor, Pai Edson. Estava louco pra lhe conhecer!

– Tome Fael. Esta caixa de chocolate sobrou e vi que você iria adorar ganhar uma.

– Obaaaa!!!

– Você estuda, Fael?

– Estudo sim, mas eu estudo em outro bairro.

– Ahh, por isso que eu pouco te vejo por aqui. A biblioteca Caboclo Girassol realiza parcerias com as escolas vizinhas no nosso bairro e muitas ações na comunidade, inclusive doando cestas básicas.

– Espera, no mês passado minha mãe chegou com uma dessas cestas em casa. Ela disse que pegou aqui por perto.

– Provavelmente sua mãe é uma das centenas de pessoas beneficiadas com as ações da casa. Nossas cestas têm ajudado muitas famílias que passaram dificuldades por falta de emprego.

 

A conversa boa com o gestor da biblioteca foi interrompida por uma voz feminina que parecia vir da rua. Era uma mulher que estava desesperada gritando por Fael. A mãe de Fael estava preocupadíssima procurando por ele e, assim que a chuva parou, ela saiu pelos quatro cantos do bairro perguntando por ele, até que se deparou com alguns senhores na banca de bicho que lhe informaram ver Fael pular o muro da tenda em busca de uma pipa.

 

Todos que estavam na biblioteca correram para a frente do portão, pois a voz aflita da mulher tirava o sossego de quem a ouvisse.

 

– Fael, meu filho! Como você me dá um susto desses, menino!

 

Fael, temendo uma bronca daquelas, olhava para Nayde e Pai Edson, rogando uma intervenção quase divina.

 

– Calma dona Joana! Seu filho chegou aqui e fez novos amigos, logo perdeu a hora de voltar pra casa e como chovia muito, ficou por aqui pra não se resfriar.

– Ai, Pai Edson, que bom que ele estava bem guardado aqui na casa. Ele deu algum trabalho?

– Imagina! Fael é um ótimo menino e é bastante inteligente. Deixe que ele participe das atividades aqui com a gente, dona Joana! Aqui a gente ainda tem cursos de português, inglês, matemática que podem ajudar Fael na escola.

 

Dona Joana num mix de sentimentos não sabia o que responder diante do pedido do Babalorixá, mas de tanta felicidade por reencontrar o filho lhe deu um grande abraço e viu  que o garoto era só felicidade por ter conhecido novos amigos, tanta alegria acalmou seu peito e logo fez ela abrir um enorme sorriso acompanhado de um sonoro sim.

– Será uma alegria enorme ter seu filho aqui com a gente a partir de hoje.

– Muito obrigada, Pai, vou trazê-lo mais vezes.

– Olhe. As cestas básicas chegam sexta-feira. Podem vim buscar, viu.

– Muito obrigada, Pai Edson, o senhor não sabe como estão ajudando lá em casa. Vamos agora, Fael. Deixei seus irmãos sozinhos lá em casa pra vir te procurar.

– Espera um pouco, mainha! Fiquei encantado com as histórias que ouvi e li na Biblioteca. Queria levar para ler em casa o livro “Zum Zum Zumbiiiiii, História de Zumbi dos Palmares para crianças”, que tia Nayde leu para gente hoje na aula de capoeira. Gostei muito porque os personagens são pretos assim como eu.

– Vamos embora, menino. Deixa isso aí!

– Pode deixar ele levar, Dona Joana. É para levar para casa mesmo. Já sei! Vou preparar uma “Capanga Literária”, que é uma das nossas ações de enraizamento comunitário, e vou colocar o monte de livros que os personagens são pretos para você ler com seus irmãos. Vou aproveitar e colocar uns para você também, Dona Joana. Nossa biblioteca é afro-centrada e tem muitos livros que falam das nossas próprias histórias e da ancestralidade com uma perspectiva igualitária e revolucionária. Livros que falam sobre a desmistificação da nossa religião, da nossa cultura. Os livros são nossos discursos para a desconstrução dos estigmas do preconceito. O que a gente acredita. Livros que mostram que o corpo negro em movimento não é uma ameaça! A biblioteca tem esse viés educacional. O corpo negro não é uma ameaça!

 

Assim, Dona Joana e Fael seguiram para casa abraçados à capanga literária repleta de histórias e carregada de novos significados para a vida do garoto, que em breve levantará voos mais altos que sua pipa tricolor.

– É, Nayde, a gente foi fortalecido pelas raízes da comunidade e vamos fortalecer ainda mais com as nossas ações do terreiro, biblioteca e capoeira, derrubando as folhas para adubar a nossa terra para que possam fertilizar novos guerreiros. Diz Pai Edson de Omulu ao fim de mais um dia de resistência.

 

Autores:
Tarcísio Camêlo, jornalista, educador social e defensor dos direitos humanos. Atua na produção de conteúdos documentais e ficcionais e na incidência política para comunicação comunitária, comunicação pública e independente. É comunicador da Releitura-PE.

Sthefano Santana, Graduando em Pedagogia, mediador de leitura e articulador da Releitura.