Venturas e Desventuras do Menino Túlio
Ou a História da Borrachalioteca de Sabará
Era um marasmo sem fim
A borracharia do Seu Joaquim
No centro de Sabará
Joaquim na dura lida
E a família na torcida
Para algum pneu furar.
E como não atender
Se por lá fosse bater
Aquele freguês saliente
Que após serviço feito
Dizia sem nenhum respeito
– Pindura isso aí pra gente!
Mas Deus nunca lhe faltou
Joaquim acreditou:
– Se for meu gato não come.
E com a borracharia
Foi criando a família
Sem ninguém morrer de fome.
E de sua filharada
Um não fazia nada
Evitava se cansar
Até que um dia, Joaquim,
Com a paciência no fim
Chamou-o pra ajudar.
Não foi cheio de orgulho
Que o moço chamado Túlio
Se dispôs a ir pra lida
Dava hora do almoço
Fingia dor no pescoço
E voltava pra boa vida.
Ele não era preguiçoso
Mas o serviço moroso
Sem nenhuma novidade
Era por demais maçante
Sem nada de interessante
Pra gente de sua idade.
– Ah é? – dizia Joaquim.
– É muito fácil dar fim,
vai caçar outro serviço.
Mas Túlio queria não:
– Cartão de ponto? Patrão?
Num vou me dar bem com isso!
Mas apesar da morrinha
Pela qual amor não tinha
Túlio foi por lá ficando
Colava um pneu ali
Ficava de ti-ti-ti
E o tempo ia passando.
Um dia, sabe lá por quê
Túlio inventou de ler
O livro de um cliente
Não, não era seu lazer
Mas sem nada pra fazer
O moço seguiu em frente.
Muito curioso e ativo
O rapaz gostou do livro
Tomou gosto na leitura
Entre um e outro cliente
Tava ele lá, sorridente
Entregue à literatura.
Ele logo percebeu
Como o tempo correu
Depois que começou a ler
Livro, revista, jornal…
Por mais que fosse banal
Servia pra se entreter.
O pai ali o via a ler
Sem nada de entender
O porquê disso agora
Mas parecia coisa boa
Já não ficava à toa
Nem pedia pra ir embora.
Mas por lá apareceu
Para consertar um pneu
Cliente de bom vestir…
O pai tava pro almoço
Túlio perguntou: seu moço,
no que posso lhe servir?
Tenho um pneu estourado
Precisando de cuidado
Você pode resolver?
– Claro! Vou dar um jeito nisso
enquanto espera o serviço
tem jornal, se quiser ler…
Ficou ali sem saber
Por que de oferecer
Jornal para o freguês
Todo caso não foi mal
O moço lia o jornal
E de boa cara o fez.
Depois do serviço feito
Parecendo satisfeito
Deu gorjeta, agradeceu
Disse que achou genial
A ideia do jornal
Enquanto trocava pneu.
Mesmo assistindo à Globo
O Túlio não era bobo
E logo sacou o lance
Tendo algo pra se ler
Na hora de escolher
Era maior sua chance.
Achou isso interessante
E uma pequena estante
Pôs em sua borracharia
Jornal, revista, gibi…
Tudo ele ia pondo ali
E a todos oferecia.
Tinha livro de piada
O cliente dava risada
Esperando o serviço.
Joaquim ia matutando
A renda ia aumentando
Mas aonde ia parar isso?
Não precisou esperar
Pro Joaquim comprovar
“O menino era sapeca”
Puxou fala pra dizer:
– Pai, que tal a gente fazer
uma boa biblioteca?
O pai fez cara de jeca
– Quê? Uma biblioteca?!
Algum doido mijô n’ocê
– Pai, tem serviço todo dia,
depois que a borracharia
dá algo pra se ler.
Joaquim disse não
Ficou olhando pro chão
Sem saber o que dizer
O garoto era esperto
Mas será que ia dar certo?
Só fazendo pra se ver.
Sem saber o que falar
Disse: – Isso não vai prestar
Mas querendo fazer, faz, uai!
Foi o mais que esperado
Túlio ficou encantado
Com a resposta do pai.
Cedo e muito contente
Antes de qualquer cliente
Fez uma faxina geral
Queixou-se de dor no braço
Mas conseguiu um bom espaço
Para o novo material.
Todo amigo que via
Conversava e pedia
Doação pra empreitada
E doação não faltou
Um mês não se passou
A ideia foi consumada.
O sucesso explodiu
Até Joaquim se viu
Adepto da situação
Se o cliente não chegava
Ele logo se sentava
Com a revista na mão.
Num dia, sem verso nem rima
Túlio deu pulo pra cima
E alto gritou eureka!
Achei o que eu queria
Aqui não é borracharia
É uma Borrachalioteca.
O pai achou esquisito
Depois já achou bonito
Borrachalioteca ficou
Doações sempre chegando
O acervo aumentando
O negócio era um show.
A notícia se espalhou
O caso interessou
Todos queriam saber
Desse menino sapeca
Que fez a biblioteca
Para todo povo ler.
Com a procura tremenda
Foi preciso uma agenda
Pra ter tudo anotado
Tiravam fotos com Túlio
Que contava com orgulho
Como tinha começado.
E não parou por aí não
Rádio, jornal, televisão…
A mídia apareceu
Pra entrevistar o menino
Que teve um desatino
E juntou livro com pneu.
Após história gravada
Queriam também tomadas
Com fala de Joaquim.
Que dizia do tumulto:
– O rapaz ficou culto,
a lida sobra para mim.
E isso era verdade
Túlio foi pra faculdade
Deu-se à literatura
Coralina, Lêdo Ivo…
O moço comia livro
Lapidando a cultura.
Já muito solicitado
Viajou pelo estado
Falando de seu invento
E onde ele passava
Alguém sempre comentava
– Esse moço tem talento!
Aqui em Minas Gerais
Ganhou honras culturais
Por seu invento genial
Também chegou a Brasília
Aonde foi com a família
Para o prêmio nacional.
Pense num cara centrado,
Rígido, sério, focado…
Um primor de cidadão
Pensa ser assim o Túlio?
Esse não é o Túlio não!
O cara não se aperta
Diz que foi a hora certa
Pra tudo acontecer.
Deu certo? Tudo bem!
Se caso não deu? Amém!
Não tinha mesmo que ser.
A obrigação não rola
Tristeza não bate bola
Compromisso é visita
Daquelas chatas, sem graça…
Que logo se despacha
Pra voltar à sua fita.
Indo ao Jequitinhonha
Bom de papo, sem-vergonha
Acabou por cativar
Águida, gentil senhorita
Artista nata, bonita,
Com quem veio se casar.
Com ela tem filho e filha
“Sartre”, e depois “Cecília”
Ambos já encaminhados
Nesta fundamental filosofia
De que sem arte e poesia
Qualquer receita dá errado.
Águida é gente de bem
Com os dons que ela tem
Interpreta com maestria
Aproveitou seu talento
Também lançou seu evento
“Os Arautos da Poesia”.
Um grupo interessante
De crianças estudantes
Que com arte e alegria
Passeiam pela cidade
Com toda naturalidade
Declamando poesias.
A família deu certo?
Vejamos isso de perto,
Até parece que sim
Mas devem ter dilemas,
Ter suas cruzes, problemas…
Como todos nós, enfim.
Com um cara de Pompéu
Um escrevedor de cordel
Um batedor de tambor
Uma mestra do Cabral
Uma turminha do sarau
Túlio logo enturmou.
Gente assim tinha aos feixes
Lembro-me Léo do Peixe
Da cidade de Pirapora
Era como Túlio mesmo
Distribuía livros a esmo
Pela cidade afora.
Estive por lá uma vez
Agora não me lembro o mês
Para ver o Benjamim
Faltava disposição
Falei pro Túlio: – Vou não!
Ele disse: – Eu mando, vai sim!
Até que foi bacana
Viagem tipo americana
Todo mundo colaborou
Eu e Túlio com a bagagem
Um amigo pagou a viagem
Léo do Peixe nos abrigou.
Com esse tipo de gente
É que Túlio se mete
E cada dia ajunta mais
Não é nenhuma plêiade
Mas, enfim, é a sua rede
Seus cúmplices culturais.
A Borrachalioteca
É de forte baluarte
Ganhou prêmios de montão
Fundou a Casa das Artes,
Abriu novas unidades…
Referência em qualquer parte.
Findando a lenga-lenga
Acabo essa pendenga
Que já vai espichada
Fica esta pérola rara
“Ele pode não ser o cara
Mas antes Túlio do que nada”.
Autor:
Silas Fonseca, poeta, contista, cronista, letrista. Silas trabalha com as palavras com a mesma naturalidade que circula entre os visitantes do Rancho da Cultura, projeto sociocultural que colabora na gestão. Ali, promove oficinas educativas, direcionadas a diversos segmentos, contribuindo para o desenvolvimento da região com ações e intervenções pedagógicas, ecológicas e autossustentáveis.