Carta para Sofia
Recife, 29 de abril de 2019
Querida Sofia,
Hoje pela manhã, quando eu estava na biblioteca fazendo a oficina Escrita de Cartas com as crianças do Coque, pensei muito em ti. Não resisti e resolvi te escrever uma carta. Sei que ainda não tem idade para entender, mas quando crescer poderá ler e conhecer um pouco melhor a história do Coque e da Biblioteca Popular. Guardarei esta carta em uma “cápsula do tempo”, uma espécie de recipiente especialmente preparado para armazenar a carta para ler quando a hora chegar.
A comunidade do Coque fica localizada entre os bairros de São José e Ilha Joana Bezerra. Esse povo daqui é resiliente, visse?! A luta pela terra, por direitos básicos de acesso à educação, saúde, moradia, água limpa e energia, pelos direitos humanos, o enfrentamento à especulação imobiliária e aos estigmas, sempre esteve presente no cotidiano do Coque, marca da nossa história.
Tu já deve ter observado que no Recife as paredes falam e são cheias de poesia, não é?
Pronto! Outro dia tava caminhando pelas ruas da cidade e vi uma frase que me lembra do que a comunidade do Coque representa. O grafite estava escrito na parede da ponte Maurício de Nassau e dizia: “Aqui se respira luta”.
Aqui no Coque é assim, querida. A gente respira luta todos os dias. Noutro dia, quando estava na estação de metrô Joana Bezerra, escutei de uma moradora do Coque: “O Coque só existe por conta do povo que resiste”. E é verdade!
Eu, sua vovozinha Maria Betânia, cheguei aqui muito nova, tinha sete anos, vinda de Caruaru, com tua bisavó Antônia. Tua bisa tinha muita inquietação e logo quis entrar nas lutas da comunidade. Foi conversar com Frei Aloísio, do Convento de Santo Antônio, e começou a participar das discussões políticas dentro do movimento social da teologia da libertação.
E eu, desde novinha, acompanhava mainha em toda essa movimentação. Debates, ações, vivências em escolas comunitárias e encontros de formação com o educador popular Paulo Freire foram alguns momentos de engajamentos que fizeram parte da minha criação.
Sofia, deixa eu te dizer uma coisa… Esses momentos me fizeram abrir os olhos para sonhar… Meu maior sonho era montar uma biblioteca comunitária na comunidade do Coque como forma de inspirar a lutar.
Aí… Certo dia, resolvi tentar. Comecei a me organizar para a criação de uma Biblioteca Popular. Para o meu sonho se realizar, comecei a me articular… E percebi que outras pessoas compartilhavam o sonho. Juntei-me ao grupo de roqueiros do Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis, o Mabi, uma organização do bairro chamada Núcleo Educacional Irmãos Menores de São Francisco de Assis e o Coletivo Coque Vive (projeto do Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco). Aí depois de muitas conversas e ideias, o grupo, junto com a comunidade, resolveu optar pelo nome de Biblioteca Popular do Coque.
Com esse nome a biblioteca comunitária foi fundada em uma casa alugada na rua Centenário do Sul. Nasceu de forma coletiva um cantinho de leitura com o intuito de resgatar a autoestima dos moradores e moradoras da comunidade. O Coque, que já tinha um histórico de luta, ganhou mais um espaço de resistência. Depois de um tempo, a gente da biblioteca popular começou a articulação com outras bibliotecas comunitárias e fizemos parte da fundação da Releitura – Bibliotecas Comunitárias em Rede, daqui do Recife e Região Metropolitana. E as trocas de experiências entre as bibliotecas foram fundamentais para potencializar nossas vivências e as mediações de leitura. Aos poucos a biblioteca foi construindo a sua identidade com um ambiente aconchegante e livros ao alcance de todas as mãos, como forma de democratização do acesso à leitura literária como Direito Humano. O acesso aos livros literários é bastante importante para o povo da comunidade e contribui na formação dos leitores, Sofia. A leitura abre horizontes, e é possível se fazer várias descobertas. Foi a maneira que encontramos para transformar a realidade do nosso bairro.
Hoje, o espaço tem programação diária e diversas atividades: mediações de leitura, Leitura na Praça, Sussurro Poético, Cine Debate, Café Literário, Festa Literária do Coque. Ah! E durante a folia de carnaval o Urso Leitor, que vai de porta em porta entregando poesia aos moradores do bairro com muito carinho e amor. E a oficina de Escrita de Cartas, que é a que falei no começo e que me fez te escrever esta carta.
Deixa eu te dizer, Sofia… No dia a dia da Biblioteca Popular do Coque, o público leitor é composto por crianças, adolescentes e jovens, em sua maioria. Mas a biblioteca tem ações voltadas ao fortalecimento do público adulto, com atividades que envolvem prosas e poesias.
Atualmente, a Biblioteca Comunitária do Coque é tocada por mim, tua vovózinha Maria Betânia, e o teu tio Rafael Andrade, que mostra que essa história de luta da família haverá continuidade. Rafael, assim como eu, sonha em transformar o nosso lugar a partir da literatura para que outras pessoas se inspirem a lutar para conquistar seus sonhos.
A história de luta e resistência não acaba aqui, Sofia, ela fica para a eternidade e ainda está sendo escrita. Quem sabe as futuras gerações podem nos ajudar a escrevê-la. Pois, como disse Paulo Freire, pedagogo das oprimidas e dos oprimidos, “nossa luta de hoje não significa que necessariamente conquistaremos mudanças, mas sem que haja luta, hoje, talvez as gerações futuras tenham de lutar muito mais. A história não termina em nós: ela segue adiante”.
Sonhar é possível, querida. Vamos abrir nossos olhos para, por meio da leitura literária, sonhar juntos e transformar realidades!
Por hoje, fico por aqui.
Grande beijo, Sofia.
Maria Betânia.
Autor:
Tarcísio Camêlo, jornalista, educador social e defensor dos direitos humanos. Atua na produção de conteúdos documentais e ficcionais e na incidência política para comunicação comunitária, comunicação pública e independente. É comunicador da Releitura-PE.