A literatura na morada dos mortos
Há 10 anos, em uma manhã de domingo, duas aventureiras saem da instituição rumo a novas descobertas e atravessam a cidade para chegar a uma região afastada do centro. Foram mais de duas horas de viagem, dentro de uma Kombi, ouvindo histórias de terror sobre a região. Mas o arrepio vindo das histórias se dissipou ao perceberem a aproximação do território, sentindo o clima diferente, mais frio, um ar puro com cheirinho de orvalho e os raios tímidos do sol que perpassavam as árvores e iluminavam o lago que ficava à beira da estrada. Os pássaros que sobrevoavam através da neblina pareciam entrar em um portal para outro universo. Ouvia-se apenas o seu cantar lá longe, um coral encantador, uma sensação de liberdade. Um paredão verde, um túnel natural de folhagens de diversas texturas, tamanhos e cheiros, árvores frondosas e outras pequeninas, troncos espessos e outros estreitos, pequenos e fininhos, com silhuetas diversas, contemplando o movimento da estrada e acolhendo quem chega.
A estrada de terra que fazia a trilha para o caminho de chegada ao inesperado. A pigmentação e o odor das flores misturados aos diversos tons de verde criavam uma paleta de cores incrível.
A imensa área rural do entorno era de agricultura familiar, com grande interesse da população valorizar os agricultores e agricultoras e os produtos advindos de lá. Com cinco aldeias indígenas, a Tenondé-Porã, Krukutu, Tekoa Kalipety, Yrexakã e Tape Mirim, que valorizavam e preservavam (até hoje o fazem) a cultura Guarani. Será São Paulo ainda? Onde estariam os prédios, as fábricas, os múltiplos carros?
Enfim, chegaram ao terreno desconhecido, mas o que encontraram? Um grupo de jovens dentro da escola em pleno domingo de manhã? Algo de muito estranho existia nessa região, não será possível! Esfregaram os olhos, olharam uma para a outra com um enorme ponto de interrogação, analisaram o endereço e indagaram se era ali mesmo, e se era aquilo o que as esperavam. Sim, um grupo de jovens esperava duas desconhecidas para criar algo que nenhum deles ainda sabia o que era. Os olhos brilharam e os olhares se encontraram, pronto, era ali mesmo.
Começava aí a costurar a colcha de retalhos das histórias dessa turma. E por que não começar com a reescrita da Declaração Universal dos Direitos Humanos? “Escrever até que minha mãe entenda” foi o lema, e a declaração foi reescrita, com ilustrações, fotografias, textos poéticos.
Mas os jovens daquele grupo queriam mais, queriam algo grandioso, uma biblioteca.
Mas uma biblioteca? Onde? Como?
De repente surgiu um espaço, um cantinho ali, dentro da Unidade Básica de Saúde (UBS). Uma grande amiga enfermeira, gerente da UBS, foi a grande parceira para que tudo começasse. E que tal transformar o espaço? Escada de pneus foi construída, jardins, expositor de livros e médico receitando leituras. Pode? Não apenas pode, mas aconteceu dessa maneira, e eis que nasceu o projeto Pílulas de Leitura.
Receitar literatura, oferecer poesia, cantar, um cantinho com livros de qualidade, estantes… outras histórias iam se juntando, outras pessoas chegando e outros livros. Infelizmente alguns não serviam, mas a intenção era boa.
Mas um fato novo mudou a história: sabe a salinha que havia se transformado em biblioteca? Aquele cantinho com livros, estantes, encontros… foi perdida, pois entre cuidar dos dentes da comunidade ou ler livros, a escolha foi cuidar do sorriso.
Com a malinha de livros em uma das mãos e as estantes na outra, o grupo partiu. Para onde? Ninguém sabia.
Mas como nem tudo (ou nada) estava perdido, o inusitado aconteceu. Um convite, um convite assustador, aterrorizante, amedrontador, horripilante, fantástico. Os corações começaram a bater mais forte, os cabelos ficaram arrepiados, as pernas tremeram e a turma de aventureiros seguiu uma nova jornada… a um local nunca pensado antes para ser uma biblioteca.
Ao se aproximarem do local, escutaram uma música que já haviam escutado antes, e que causou mais calafrios ainda. O som ia ficando mais alto. O céu escureceu, um ventinho soprou fazendo um ruído horripilante, em volta não havia mais ninguém além daqueles em busca de um novo cantinho para abrigar livros e histórias.
Tumbalacatumba tumba ta,
Tumbalacatumba tumba ta,
Tumbalacatumba tumba ta,
Tumbalacatumba tumba ta…
Quando o relógio bate a uma,
Todas as caveiras saem da tumba…
Tumbalacatumba tumba ta,
Tumbalacatumba tumba ta.
E quanto mais se aproximaram do local, as vozes ficaram mais assustadoras, horripilantes, pareciam estar ao pé do ouvido, um sussurro, um grito.
Quando o relógio bate as duas,
Todas as caveiras pintam as unhas…
Tumbalacatumba tumba ta,
Tumbalacatumba tumba ta…
Eis que o portão se abriu e, ufa, que alívio! Era apenas a casa do coveiro. Isso mesmo, a nova biblioteca será na casa daquele que sepultava os corpos. E olha que o espaço nem era tão assustador, um lugar verde, florido e acolhedor. E a história de que “não vou para o cemitério nem morto” foi por água abaixo. Vivos e cheios de energia.
Uma nova história começou a ser construída por essa turma, que acreditava no poder transformador da literatura. E que ressignificou a morte e teve orgulho de uma biblioteca no cemitério.
Com o novo espaço, chegara a hora de acessar parceiros, escrever projetos, captar recursos para reformar a nova morada e equipá-la, transformando-a em uma biblioteca acolhedora, mediadora, encantadora.
Surge a Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura, nome escolhido pela comunidade, jovens recebendo formações e atuando como mediadores de leitura e gestores do espaço.
Ganhou vida, alegria, arte e literatura… Os jovens e a equipe do Ibeac (a instituição que chegou ao território) organizaram vários encontros, acontecimentos e histórias.
A biblioteca se tornou Ponto de Cultura, acolheu temas e projetos, desde o empoderamento feminino, do cuidado com a mulher, até a criação de um espaço gastronômico – histórias são compartilhadas enquanto as receitas com os frutos e plantas da região são produzidas.
Crianças, jovens e adultos se encontram nas mediações de leitura, nos bate-papos com autores, nos saraus, nos momentos festivos. Acontecem saraus para falar de gênero e literatura, rodas com os artistas da região e rodas com diferentes temáticas. A vida entra na biblioteca.
E nada melhor do que estar no cemitério para fazer um Sarau do Terror. Tradição do mês de novembro, logo depois do Dia dos Mortos. Pessoas de todos os cantos da cidade chegam à biblioteca para participar do sarau e discutir a vida no lugar onde a vida termina, no espaço que os jovens têm orgulho, nas rodas que discutem o direito de morrer e de como queremos ser lembrados depois de mortos; como as religiões se relacionam com a morte… os clássicos literários são citados e ocupam os diversos espaços, transformados em peças teatrais. Os jovens chegam fantasiados e concorrem a melhor caracterização, há contação de histórias, cortejo de leitura. A biblioteca se transforma em um local cheio de mistério – sombrio e ao mesmo tempo divertido, com tantas memórias, contos e prosas compartilhados.
A Caminhos da Leitura hoje é referência na região, por ter a gestão de jovens, pelas atividades promovidas, possibilitar espaços de reflexão, troca e discussões de diversas temáticas. Um lugar para todos, com encantamento e acolhida.
E quando o relógio bate… é hora de todos se achegarem para espalhar histórias, memórias, poesias, vida.
Autora:
Val Rocha, artista, mediadora de leitura, arte-educadora no Instituto Brasileiro de estudos e Apoio Comunitário e na Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura e na Rede de Leitura LiteraSampa, sistematizadora na Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias.