O Capibaribe entardecia entre as idas e vindas das capivaras, o canto dos bem-te-vi e dos sabiás, as borboletas em voos desajuizados e os pequenos soldadinhos que saiam de suas tocas. Juntava-se à paisagem, os dois amigos seu Silva e seu Carlinhos, com suas sete décadas de vida, na prosa amiga de quase todo o dia. Nos braços da tarde, a juventude conversava à beira do rio e não se falava em outra coisa: O filme exibido na biblioteca do Poço na noite passada.
– Manu, tu visse o filme que passou ontem na biblioteca?
– Vi, Paulinho. Do caramba! Tu visse, Rosinha?
– Vi. Gostasse?
– Gostei, visse! Eu gosto dos filmes que passam lá. – Respondeu Manu.
– Li no fanzine que ganhei lá na biblioteca feito por Ailton, que era o antigo mediador de leitura, que aqui no Poço da Panela já foi muito cenário de filmes. – Disse Rosinha.
– Outro dia passou um filme na biblioteca que foi gravado aqui no Poço. – Comentou Paulinho.
– Mas nunca foi gravado aqui na comunidade da Beira do Rio. Quando tem gravação de filme fica só ali na parte antiga do Poço da Panela, oxe! – Constatou Manu.
– Ei, pow! Tu me desse uma ideia massa. E se a gente fizesse nossos próprios filmes e mostrasse nossas histórias?
– Revelou Rosinha toda empolgada com sua nova ideia.
– Como é, pow? E a gente vai gravar como? – Perguntou Paulinho.
– Com o celular. Mainha tem um celular que tem uma câmera que dá para filmar e fica bom. Tem muito filme que já foi gravado assim, sabia? Passou outro dia lá na biblioteca um filme que foi gravado só com o celular. – Falou Rosinha.
– Oxe! Que massa! Já tô viajando aqui. Tem muita história para contar.
– Tem mesmo, visse! A gente poderia começar com a história da biblioteca, o que vocês acham?
– Oxe! Fechou, vamos lá na biblioteca. Vou pegar o celular de mainha.
– Enquanto Rosinha foi buscar emprestado o celular da mãe, o restante do grupo seguiu em direção a biblioteca e encontraram com a mediadora de leitura Paty e a monitora Déa.
– Oi Paty, oi Déa, tudo bem? A gente tá querendo fazer um filme sobre a Biblioteca do Poço da Panela igual a gente viu ontem no cineclube.
– Que maravilha, Paulinho! E como vocês estão pensando? – Respondeu empolgada Paty
– A gente tá pensando em gravar com o celular mesmo, Rosinha foi pegar o da mãe dela que ela disse que tem uma boa resolução.
– Eita! Que coisa boa, Paulinho! – comentou Déa
– Olha Rosinha aí, conseguiu pegar o celular? – Perguntou Manu.
– Peguei sim, Manu. Já explicaram para Paty e Déa como vai ser a gravação?
- Explicaram sim, Rosinha. Tem até um microfone aqui na biblioteca que pode deixar o som ainda melhor. – Respondeu Paty.
– Eita, que massa! A gente poderia entrevistar as duas ao mesmo tempo. Coloca o microfone perto e vocês vão respondendo juntas. O que acham? – sugeriu Manu
– Boa, Manu. A gente faz um enquadramento na câmera que aparece as duas.
– Paty e Déa, quando começarem a gravar, falam o nome completo e o que fazem aqui na biblioteca e começa a contar a história da Biblioteca do Poço, certo?
– Tá certo, Rosinha, pode colocar para gravar. – Comentam Paty e Déa.
– Vou ajeitar aqui a câmera, silêncio na biblioteca, Gravando!
– Meu nome é Ana Patrícia Soares de Souza, conhecida como Paty, sou pedagoga e mediadora de leitura da Biblioteca do Poço.
– Meu nome é Andrea Carolline Campos Feitosa.
– A história da Biblioteca começou com Evaldo Gomes de Moura, mais conhecido por Naná, que era um queridíssimo e ilustre morador do Poço da Panela. Todo mundo o conhecia pela sua kombi e a sua dedicação em ajudar a todos na comunidade. Certa vez, quando voltava de um serviço, Naná se deparou com um grande grupo de crianças caminhando para a escola. Naná aproximou-se da meninada e ofereceu uma carona de kombi para todo mundo. – Relata Paty.
– E as crianças aceitaram a carona? – perguntou Rosinha.
– Como todos já conheciam Naná, sentiram segurança em aceitar a oferta. As crianças foram deixadas no destino e muito agradecidas seguiram para mais um dia de aula. Naná enxergou nesse pequeno ato uma missão importante, pois muitas mães tinham o trabalho de levar e trazer seus filhos da escola, cruzando duas grandes avenidas movimentadas: a 17 de Agosto e a Estrada do Arraial. Uma tarefa a mais pra quem já vive cheia de coisas pra fazer em casa. Como era o mês da criança, o generoso motorista seguiu por todo mês de outubro, se estendeu por novembro e dezembro.
– E no outro ano, como ficou? – disse Paulinho.
– Quando o ano virou, ele continuou na missão. Naná nunca cobrou nenhum valor para levar as crianças para a escola e o seu ”pagamento” era que as crianças fossem cantando, brincando e perturbando o pessoal na rua. Era a maior algazarra! A kombi logo se tornou uma ferramenta de mediação entre a comunidade e a escola, a condução agora possuía uma listinha, registrando quem a utilizava. Naná da kombi passou a ser mais que um motorista, ele passou a ser o orientador daquelas crianças e ajudou com seus conselhos muitas crianças e adolescentes com notas baixas, com mau comportamento e até mesmo aqueles que eram muito tímidos e calados e pouco interagiam com as outras. O banco da frente, ao lado de Naná, acabou se tornando uma espécie de espaço para contornar os problemas juvenis, e funcionava para levantar a auto estima das crianças que encaravam algum problema. Em dias de jogo do Santa Cruz, a Kombi também servia de transporte para a torcida tricolor da comunidade e Naná também levava as crianças que torciam para o Santinha que ficavam encantadas e adoravam assistir aos jogos da Cobra Coral no Estádio do Arruda. Esses pequenos atos de afetos de Naná tocavam os pequenos. – Lembra Déa.
– E em que ano a biblioteca foi fundada? – Perguntou à Manu.
– Em muitas idas e vindas na comunidade do Poço, a kombi de Naná chamou a atenção de um morador em especial, o jornalista e escritor Samarone Lima, também tricolor, que logo procurou se inteirar de toda a história por trás da kombi. Uma amizade surgiu entre o jornalista e o motorista. Muitas conversas e planos surgiram para deixar a ação ainda mais potente, mas uma ideia, não se sabe ao certo quando surgiu, pintou entre os dois: A biblioteca do Poço. Ninha (Maria Erenir) e Boy (André Campos Feitosa) se juntaram a Naná e Samarone Lima e formaram o quarteto que fez nascer em março de 2011 a Biblioteca Comunitária do Poço da Panela. – Conta Paty.
– E como foi que começou a ideia? – perguntou Paulinho.
– O Poço sempre teve muita coisa destinada para crianças como campeonato de futebol, quebra panela, festa do dia das crianças. Todo mês tinha um parabéns para as crianças aniversariantes lá na venda de Seu Vital. Mas Naná queria criar um espaço para que os pequenos pudessem fazer atividades culturais, para leitura e outras coisas, para não ficarem trelando na rua e foi aí que Naná, Ninha, Boy e Samarone Lima começaram a procurar um lugarzinho para montar o Espaço e acharam a casa da Rua Beira Rio, que abriga a até hoje a Biblioteca Comunitária do Poço da Panela. – Relata Déa.
– E como foi no começo da Biblioteca?- Perguntou Rosinha
– Como Samarone é jornalista e tinha muitos contatos, ele conseguiu fazer uma campanha de doações de livros exitosa e Naná ia buscar as doações na Kombi para o acervo da biblioteca. Desde o começo, a biblioteca também contou com a ajuda de muitos voluntários para fazer contação de história, aulas de música, dança popular, origami, e muito mais. Com as atividades culturais no espaço, as pessoas da comunidade começaram a despertar o olhar para a biblioteca como o principal espaço cultural voltado para o território. – relembra Déa.
– Além dos livros, a biblioteca também realiza muitas atividades, né? – pergunta Manu.
– Com o passar dos anos a Biblioteca do Poço foi se afirmando como um espaço de democratização e valorização do livro e também de ações de mediações culturais que aproximam à leitura literária a outras linguagens das expressões artísticas e sociais como ações de capoeira, Dança popular, Yoga, mediações de leitura, cursos de inglês e sessões de cineclube. Essas ações são voltadas para o enraizamento comunitário, que por meio de uma programação continuada a biblioteca fortalece ainda mais os elos, os vínculos e o reconhecimento da biblioteca como espaço territorializado. – Observou Paty.
– Para você qual é a importância da biblioteca do Poço para comunidade? – questionou Rosinha.
– É o único espaço cultural da comunidade, aqui é uma referência para estar. E as crianças gostam de estar aqui na biblioteca. Pedem livros, pedem para as mediadoras que façam mediação de leitura, é um espaço de convivência. Aqui é possível conhecer o mundo da leitura e dos personagens, para que a partir da leitura possa se tornar novas pessoas. – Conta Paty.
– É! Mas também tem sido lugar pra brincar com jogos que temos, participar de Oficinas de múltiplos temas como Máscaras, Origami, Contações de Histórias e Cantorias, participar de aulas de Inglês, estudar Matemática. E mais, sem esquecer da Capoeira Angola que a Elaine, moradora, e o Professor Pedro Silveira estão promovendo com tanta dedicação. – Lembra muito bem Déa.
– Estamos chegando no final da entrevista, tem alguma coisa que gostaria de comentar que a gente não perguntou? – pergunta Manu.
– Tem sim, Manu. Atualmente, a Biblioteca do Poço faz parte da Releitura – Bibliotecas Comunitárias em Rede, e as trocas de saberes com outras bibliotecas tá massa! Tá mostrando caminhos pra gente organizar melhor nossos livros, gibis, e tudo mais, e ainda pensar nas mediações de leitura para acontecerem no nosso espaço.
– Corta! Muito obrigada pela entrevista, Paty e Déa. Trouxeram tantas coisas importantes sobre a Biblioteca.
– A gente agradece, Rosinha. E, sabe, muito bom esse filme que vocês estão fazendo. A biblioteca precisa ser divulgada muito mais para que as famílias da comunidade possam nos visitar e cresça cada vez mais o nosso público leitor, fala Paty.
– Onde vocês estão pensando em exibir? – Pergunta Déa.
– Olha, inicialmente compartilhar nas redes sociais mas também poderá ser exibido em outros momentos em diferentes espaços.
– Muito bom, Paulinho! Pode ser exibido em uma sessão do cineclube da biblioteca também – sugere Paty.
– Ótima ideia, Paty! Vai ser muito bom! – disse Manu.
– Agora vamos filmar umas imagens da comunidade para colocar no filme também. Ainda tem muito trabalho para finalizar. Até mais, Paty e Déa.
– Até mais! Quando estiver pronto a gente organiza a sessão de cineclube com muita pipoca! – diz Paty.
– Obaaa! – Responderam todos.
Autores:
Tarcísio Camêlo, é jornalista, educomunicador e defensor dos direitos humanos. É comunicador da Releitura-PE.
Sthefano Santana, Graduado em Pedagogia, mediador de leitura e articulador da Releitura.