Bastante tempo atrás o Rio Beberibe, que corta as duas grandes cidades, Recife e Olinda, era tão cristalino, mas tão cristalino, que a distância era possível ver os peixes nadando. Todos os dias, vários pescadores saíam de casa para retirar o sustento da família. Os rios são repletos de peixes de vários tipos, formas e cores, e nessa região de solo massapê, na qual se localizavam vários engenhos,
havia peixes pequeninos, que nenhum pescador sabia o nome. Daí todos iam pescar no rio dos peixinhos. O nome foi tão falado, espalhado pela boca e ouvidos de todos os pescadores, que deram o nome Peixinhos ao bairro.
Mas antes precisamos voltar alguns anos.
Onde hoje é o Peixinhos, as terras pertenciam ao donatário Jerônimo de Albuquerque, com o Engenho Nossa Senhora da Ajuda. Os anos foram passando e suas terras sendo loteadas. Com isso, começaram a surgir as indústrias de cal e fosfato, e o matadouro, a 19 de novembro de
1919 (guardem os dados do matadouro, pois no contar da história algo incrível acontecerá).
As empresas chamaram a atenção de várias pessoas em busca de trabalho, principalmente pessoas oriundas da Paraíba e interior de Pernambuco.
Com o crescimento populacional e o trabalho voltados às indústrias, ao matadouro e à pesca, surgiu o bairro de Peixinhos.
Agora vocês pensam que a história desse local é só indústria e matadouro? Não mesmo! Peixinhos sofre muito com o descaso dos governantes, apesar de estar na divisa entre Recife e Olinda. Já foi palco de injustiças e violências.
O solo massapê não apenas é fértil para as plantações de cana-de-açúcar; diversos movimentos sociais e culturais nasceram como a cana, resistente, forte, se espalhando na comunidade.
Uma de suas histórias de resistência é que na década de 1970 o governo de Pernambuco queria transformar o bairro em um local de transbordo de lixo, algo inaceitável. Com isso, a população de Peixinhos uniu forças e deu início à luta contra o lixo. Vários artistas plásticos, poetas, atores e principalmente bandas de rock e pessoas do movimento punk se enraizaram na comunidade como um rio e seus afluentes.
Shows, saraus, ensaios e dramatizações foram promovidos, e assim surgiu o Movimento Cultural Boca do Lixo.
Lembram-se que pedi para guardarem o nome “matadouro”? Pois bem, aqui surge algo lindo, e que deu nova inspiração a toda a comunidade. Em 1997, o Movimento decidiu ocupar o antigo matadouro de animais, até então abandonado, utilizado como espaço para o tráfico e desova de assassinatos.
O espaço deu novamente início a vários movimentos culturais. O poeta Oriosvaldo fez um poema em nome do matadouro, mas dando a ele nova roupagem. Acho interessante contar a vocês.
NASCEDOURO
Esta terra
Banhada em sangue
De animais
E suor de homens
Não será mais matadouro
Posto que doravante
Será o nascedouro
Da Cultura Popular.
Não mais a morte
Nem a violência
Mas sim a alegria das crianças
Brincando e dançando.
A perspicácia dos
Artistas jovens
E a esperança
Dos velhos artistas.
Vocês acham que essas foram as únicas ações do Movimento Cultural Boca do Lixo? Não mesmo, visse! Nos anos 2000, vendo a necessidade de a comunidade ter um projeto constante, que iria além dos ensaios, shows e saraus que aconteciam, surge a Biblioteca Multicultural Nascedouro. O nome veio dos estudos que fizeram os integrantes Rogério Bezerra, Fabiana Braga, Vinícius Viramundo, Rogério Vícius, Walquiria Araújo e tantos outros que integravam e ainda integram a biblioteca. Os estudos se fundavam no multiculturalismo, nas aproximações de várias linguagens, várias formas de se expressar e valorização da pluralidade da cultura, fazendo com que elas coexistissem no mesmo território.
A biblioteca hoje é um dos principais espaços ativos na comunidade, porém a resistência nunca é pequena. Vocês imaginam que mesmo com todas essas ações lindas que o MCBL fez, os governantes levantam mentiras quanto a eles? Como o atual espaço no qual a biblioteca se localiza é dignamente ocupado pela população, os que estão no poder não aceitam com bons olhos a biblioteca. Vez ou outra chega algum indivíduo querendo retirá-la do local.
Mas sabem como os integrantes da biblioteca resistem? Acho que toda a história já dá para imaginar… Com leitura, empréstimos, mediações de leituras, saraus, shows e um projeto lindo, a História do Boi Menino.
O Boi Menino era um boi que andava pelo bairro de Peixinhos animando a população. Todas as crianças podiam subir nele e fazer carinho, pois ele gostava muito. O Boi foi tão importante na comunidade, que hoje tornou-se uma lenda que todos contam.
A Nascedouro sempre traz à tona as histórias do Boi Menino para as crianças, e desenvolve projetos maravilhosos…
Um deles é o Bibliboca Mambembe, ação constante e itinerante que sai pelas ruas recitando poesias, contação de histórias, exibem curtas-metragens com temas sobre a literatura e histórias de personagens da literatura, e na frente do cortejo vem o Boi Menino alegrando…
Eita! Olha quem vem vindo! Ouçam os toques dos tambores e alfaias! É o Boizinho Menino do Nascedouro, entoando a sua loa.
Lá vem o meu Boizinho,
Meu Boizinho vale ouro,
Salve o meu Boizinho Menino,
Que vem lá do Nascedouro (bis)
Lá vem! Lá vem!
Vem tão bonitinho.
Lá vem! Lá vem!
Todo arrumadinho.
Lá vem! Lá vem!
Ele todo gracioso.
Lá vem! Lá vem!
O Boizinho do Nascedouro.
Encerro a história como um rio e seu estuário. A história não se fecha, mas se abre para a imensidão do mar com toda a fertilidade do rio e seus afluentes.
Autor:
Rafael Andrade, licenciado em Letras Português e Espanhol pela Universidade Federal de Pernambuco. Gestor e mediador de leitura da Biblioteca Popular do Coque e articulador na Releitura.